Prólogo

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- Eleanor, você acha que algum dia poderemos sair daqui? - perguntou Noah, curiosa, enquanto lavávamos a escadaria.

Olhei para o montão de escadas do orfanato que ainda precisavam de limpeza e suspirei, desanimada. Somente Noah, minha melhor amiga, poderia pensar em fantasiar nesses momentos.

- Não sei, Noah. – disse, bufando.

- Você nunca parou pra pensar em como é o mundo lá fora? – quando viu minha expressão de descrédito à sua conversa, Noah encolheu os ombros.

Não quero ser sempre a pessoa que estraga as esperanças de Noah, então me esforço ao máximo para abrir um sorriso azedo, enquanto falo entredentes:

- Talvez haja uma esperança pra você. – digo.

Ela continua limpando as escadas com o escovão.

- Não quero ir a lugar nenhum sem você. – fala, sem olhar diretamente pra mim.

Abaixo-me ao lado dela, arregaçando as mangas e começando a esfregar também.

- Noah, uma de nós estar livre daqui é melhor que nenhuma, concorda? – digo, por fim, após ponderar minuciosamente o peso de minhas palavras.

Noah Calisto podia ser minha melhor amiga, mas às vezes era difícil conviver com ela. O único médico que, vez ou outra (geralmente quando algum de nós estava à beira da morte) vinha aqui, dizia que ela sofria de algo recentemente descoberto chamado autismo. Nenhum deles sabia direito como lidar com isso, mas eu já estava acostumada.

Lidar com Noah requeria um pouco de coragem e bom senso, principalmente quando ela nos traía com seu literalismo desenfreado. Mas ela continuava sendo a mesma Noah que eu sempre conheci, e era a pessoa que eu mais amava no mundo inteiro – não que houvesse muito mundo para uma criança órfã de 11 anos amar.

- Não concordo. – disse, por fim, entortando o nariz; então eu sabia que o assunto estava encerrado.

O sino da catedral do orfanato tocou, e todos nós corremos escadaria abaixo, alguns de nós escorregando e tropeçando uns nos outros. Ficamos em fila rapidamente, formando uma abertura no tapete vermelho para que a madame Foster e sua filha, Addison, pudessem passar.

A madame Olga conseguia ser pior do que a diretora Cleonice e o zelador, senhor Wilson, juntos. Se alguns de nós a encarássemos por muito tempo, punição. Se estivéssemos muito sujos e até muito limpos, punição. Uma vez ela puniu um garoto por respirar muito alto.

- Silêncio! – gritou a diretora, com sua famosa vara de carvalho retorcido na mão. – Saúdem a madame Foster e sua filha, senhorita Addison Foster.

- Olá, senhora e senhorita Foster. – dissemos, em uníssono.

A madame entrou junto a sua filha, ambas elegantemente trajadas – o que para mim não apagava nem um pouco a cara de cobra das duas. Ri baixo com o pensamento, mas só percebi que havia sido alto demais quando Noah esbugalhou os olhos pra mim e toda atenção estava, subitamente, em mim.

Engoli em seco quando a madame se aproximou de mim rápido, pegando emprestado o galho da diretora.

- Estenda a mão! – berrou, e fiz como ordenado.

O pedaço de madeira retorcido desceu com toda força em minha mão; tive que morder a língua com força para não gritar. Olga odiava gritos de crianças, apesar de, comicamente, ter comprado esse orfanato para se vangloriar de seus bons feitos. Senti o gosto de ferro na boca e minhas lágrimas rolaram, silenciosas, pelo meu rosto.

- Da próxima vez, eu corto sua língua. – disse, histérica. – Vamos ver se você ri agora.

Recolhi minha mão – que parecia mais morta que viva, entorpecida pela dor do golpe. – e controlei minha respiração. Noah segurou minha outra mão e olhava para Olga com tanto ódio que poderia destilar veneno na baba agora mesmo.

De repente e, em plena luz do dia, inúmeros morcegos invadiram o salão da catedral, todos indo diretamente para Renée. Todos desatamos a rir da forma como eles praticamente a carregaram para fora e a jogaram na lama, afundando sua cabeça nela várias vezes.

A essa altura eu já havia parado de chorar - embora a dor não houvesse cessado por completo, esse era o tipo de cena com o qual sonhávamos secretamente. Foi a primeira vez que ri tanto, desde que me lembro. Noah permanecia ao meu lado, com um pequeno sorriso nos lábios, como se algum desejo secreto seu finalmente houvesse sido realizado.

Naquela noite, eu me senti muito bem. – apesar de todos termos sido condenados a um mês inteiro sem recreação ou jantar por ter rido da madame, eu estava feliz.

- Eu fiz aquilo, Eleanor. – disse Noah, levemente entusiasmada, observando minha reação à sua repentina confissão.

- O quê? – eu estava distraída pensando que finalmente Deus havia ouvido minhas orações hoje.

- Os morcegos, eu os chamei.

Noah poderia ser tudo, mas não era o tipo de pessoa que fazia brincadeiras. Algumas vezes eu precisava ensiná-la a mentir socialmente, para nos livrar de algumas encrencas – tamanha sua sinceridade.

Não consegui pensar em nada bom o suficiente para responder, então apenas fiquei calada, observando a expressão divertida de Noah, que se aproximou da minha cama e subiu nela, pegando minha mão machucada.

- Ai! – reclamei, quando ela tirou as faixas que eu pus.

- Vou te mostrar. – disse, concentrando-se na minha mão.

Milagrosamente, eu diria, pois não havia outra forma de explicar aquilo, minha mão sarou por completo em alguns segundos. Noah encarou minha expressão boquiaberta e ficou confusa.

- Você não gostou? – perguntou.

Uma das maiores dificuldades de Noah, além de controlar seu literalismo e sinceridade extrema, era identificar emoções corretamente. 

- Noah, isso é incrível... – disse, encarando minha mão com uma fascinação ímpar.

- Deve ser por isso que essa carta chegou pra mim. Um dos morcegos estava com isso! – falou casualmente, entregando-me um envelope que dizia '' Para o quarto no sótão'' e estava endereçado a ''Noah Calisto''. O remetente era a '' Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts''.

Passei anos torcendo para uma boa família adotar a Noah, mas quando ela finalmente estava prestes a conseguir algo parecido com isso, senti o peso da solidão antecipadamente. Não queria me separar dela.

Eu estava completamente imóvel, em choque. Noah precisou me sacudir para que eu falasse.

- Eu... não sei o que dizer.

- Mas eu sim, amanhã iremos embora, você e eu, para Hogwarts.

- Não consigo fazer o mesmo que você fez. – disse, sentindo-me derrotada.

- Isso não importa! Vamos dar um jeito, nem que você vá na minha mala amanhã.

Um sorriso de esperança, pela primeira vez, brotou em meu rosto. 

Uma Trouxa em HogwartsOnde histórias criam vida. Descubra agora