10. Ayla

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As roupas são macias, mas o espartilho está apertado de um jeito horrível, eu mal consigo sentar sem ver estrelinhas. Mas, além de ser obrigatório, com a barriga que a irmã feia tem só um espartilho consegue ajudar.

Ella tentou me convencer que sou bonita, mas acabou sendo pior. Eu fiquei me comparando à ela, que é linda, uma gentileza em pessoa e está sempre pronta para fazer o que mandarem. Principalmente o que a madrasta dela manda. O pior é que a madrasta é minha mãe.

Quer dizer, aparenta ser a minha mãe, mas eu sei que não é ela. Minha mãe não faria mal nem à uma formiga e além disso, estou dentro de um livro. O livro da Cinderela. E eu preciso sair daqui.

Durante o café da manhã eu pensei em diversas maneiras de sair, mas então um estalo veio em minha mente: para eu descobrir como sair, primeiro tenho que descobrir como e porquê entrei.

Fiquei tão absorta em meus pensamentos e concentrada em respirar, que nem dei muita atenção à tagarelice de Evangeline, nem aos insultos que a madrasta da Cinderela jogava para a garota. As duas são insuportáveis e não merecem que eu perca meu tempo ouvindo seu cacarejar.

Depois do café uma carruagem razoavelmente velha, e com a tinta preta descascando nas laterais, nos leva ao centro da pequena cidade. Fico observando o chão de terra se transformar em cascalho e pedras, e algumas casinhas e casebres, lojas, mercadinhos e uma ou duas tabernas aparecerem pelo caminho.

É quando minha ficha cai novamente. Eu estou, literalmente, dentro de um livro, vivendo a vida de uma personagem. E eu deveria estar agindo como se fosse minha vida normal, e não como se eu tivesse acabado de acordar no corpo de outra pessoa. Pessoa essa que nem existe na vida real.

Olho para as duas personagens mais horríveis que existem no mundo inteiro, dos contos de fadas, e me sinto enjoada. Vou ter que fingir ser a irmã feia pelo tempo que passar por aqui. E espero que seja pouco tempo, mas antes tenho que achar alguém de confiança, alguém que me ajude a voltar para casa.

Tentei falar com Cinderela mais cedo, mas ela não parecia que estava me ouvindo. Evangeline e a Madrasta (não consigo pensar nela de outra forma) estão totalmente fora de questão. Nunca contarei para as duas, disso eu tenho certeza.

Evangeline deixou escapar que tenho um tipo de amizade com o filho mais velho do alfaiate e da modista, um tal de Diogo Larsson. Ela contou que vivemos implicando um com o outro desde o casamento de nossa mãe com o pai de Ella, mas sempre estamos juntos como melhores amigos ou algo mais, ela deixou escapar com um ar debochado. Só de me lembrar que ele pode ser a pessoa que vai me ajudar a voltar para casa, meu coração aquece e dá um salto.

A carruagem para na frente de uma praça. De um lado tem a loja de roupas da família Larsson e do outro tem os enormes portões para o castelo. O castelo do príncipe, que dará um baile em breve para todas as moças do reino. Os convites ainda não foram entregues, mas por ser tradição já é mais que esperado, e é por isso que viemos até aqui.

Tento não pensar muito nisso enquanto desço do veículo e entro na loja. Talvez eu tenha vindo para ajudar a Cinderela, talvez eu seja a fada madrinha, ou o juízo na cabeça dela que a fará fugir ou reivindicar o que é seu por direito. São tantas possibilidades, tantos talvez...

Um rapaz alto, de cabelos pretos como a noite e queixo quadrado e firme, nos recebe com um brilho de divertimento nos olhos castanhos direcionado somente a mim. Sinto um frio na barriga assim que nossos olhos se encontram, esse deve ser o Diogo, meu amigo.

E que amigo! Se ele fosse da minha escola, e na minha época e realidade, com certeza seria crush de todas. Uma pena que ele não é real, não fora daqui.

— Bom dia, Senhora — Diogo se dirige à madrasta e depois à mim e Evangeline. — Senhoritas — ele faz uma pequena e breve reverência, apenas com a cabeça. — Como posso servi-las nesta manhã?

— Quero três vestidos de festa, para mim e para minhas filhas — a madrasta responde, de queixo erguido.

O moreno olha de relance para a porta da loja, que está fechada, como se estivesse esperando alguém chegar. — A srta. Ella não vai querer um também?

Ella ficou em casa, fazendo o almoço. E eu não movi um dedo para a ajudar, nem para pedir um vestido para ela, fiquei indecisa do que seria o certo a se fazer e acabei optando por ficar calada. Mas ainda não sei se foi a melhor opção.

— Não — é tudo o que a madrasta diz. Ela se senta em um sofá de couro bege e o encara. — Onde estão seus pais?

— Logo chegarão. Enquanto isso, aceitam algo para beber?

Passo a próxima meia hora escutando como Evangeline quer seu vestido, mesmo sem a modista presente para ouvi-la. A madrasta passa esse tempo revirando os olhos para a filha, mas a escuta, diferente de mim e do Diogo. Ele me lança vários pedidos de socorro pelo olhar, mas eu retribuo, sem poder ajudar e igualmente em apuros.

Quando seus pais finalmente aparecem, é como se tivesse saído um peso de minhas costas. As duas se voltam para eles e ignoram minha existência e a de Diogo.

O rapaz me convida para um passeio na praça, até pergunta à madrasta se ela dá permissão. Mas ela faz um gesto com a mão, indicando que tanto faz.

Saímos da loja e respiramos o ar puro, ou quase, da praça movimentada. Ele me oferece seu braço e eu enlaço o meu nele, ainda sem dizer mais do que "obrigada" ou "com licença".

Meu coração está acelerado, ansioso demais para deixar minha cabeça pensar. Eu achei que seria mais fácil, mas não está sendo. E se ele não acreditar ou pior, me achar louca? Se ontem alguém tivesse chegado e contado a mesma história eu chamaria a polícia.

Andamos pela praça em silêncio, paramos somente no padeiro e ele nos compra um pão doce, muito parecido com o sonho da padaria na esquina da minha casa, na vida real. Existem alguns bancos embaixo das diversas árvores da praça, com sombras frescas. Escolhemos um banco vazio e sentamos, para apreciar o doce.

— Você está mais calada que o normal — o moreno comenta entre uma mordida e outra.

Eu estava concentrada em meu doce, mas desvio meu olhar para o rapaz ao meu lado. Ele observa a fonte que se encontra no meio da praça, com os ombros largos relaxados por baixo do casaco turquesa, mas, por alguma razão, eu sei que ele está com sua atenção total para mim.

— Eu geralmente sou tagarela igual minha irmã? — me refiro à Evangeline. Ele dá um sorriso sarcástico e me olha pelo canto do olho.

— Aí está a Ayla que eu conheço. E não — ele vira seu rosto para mim, me encarando de frente, mesmo uns centímetros mais alto que eu —, você não é tagarela como Evangeline, graças a Deus!

Sorrio, tomando como um elogio, e fico menos nervosa. Acho que é um ótimo momento para contar.

— Tenho que te contar uma coisa, mas, provavelmente você vai me achar louca.

— Difícil, mas fique à vontade — ele cruza um tornozelo sobre a perna, parecendo realmente interessado. — Espero que esteja tudo bem com Ella e com o nosso plano.

Eu estava prestes a abrir minha boca, mas paro no meio do caminho. — Que plano?

Ele franze o cenho, um pouco surpreso pela minha pergunta.

— O de fazê-la se apaixonar por mim — ele diz como se fosse óbvio.

Mas talvez seria para a outra Ayla, a sua amiga. E para mim... Eu mal sabia que ele existia há umas duas horas atrás.

Engulo em seco, voltando a ficar nervosa.

— O que tenho para contar tem a ver com isso — Diogo continua me olhando, esperando paciente. — Mas prometa que não contará para ninguém. Por favor — ele faz um gesto com a mão, para eu continuar. Respiro fundo com o coração na mão e conto tudo.

O Que Os Contos Não ContamOnde histórias criam vida. Descubra agora