19. Ayla

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Eu sempre quis ser atriz. Não me lembro quando decidi, e também não me lembro se já pensei em ser outra coisa. Fiz alguns cursinhos e participei de várias apresentações. Até de um musical, que não foi perfeito por causa dos meus colegas, eu fiz parte.

Mas essa vontade sempre esteve comigo, e eu sempre fui boa em mentir e fingir. E agora, dentro do conto da Cinderela, posso fingir ser o que não sou, como se eu estivesse atuando. Quer dizer, só quando estou com a Madrasta e Evangeline. Não consigo maltratar a Ella, e não consigo não ser eu mesma perto do Diogo.

Ele transmite uma leveza e paz, está sempre implicando comigo e sendo sarcástico, com aqueles olhos castanhos que parecem me despir cada vez que me olham. E, enquanto ele me ensina como as damas desse tempo devem se portar, eu o ensino a ser o cara por quem Ella se apaixonará. 

Combinamos que, para realmente dar certo, colocaríamos à prova tudo o que aprendemos. Ontem passeamos pela praça, e ele me fez cumprimentar a maioria das pessoas que passaram por nós, e depois tomamos chá num restaurante fofinho.

As pessoas por aqui nos conhecem, então não acham estranho, nem jogam indiretas, sobre estarmos sempre juntos. É como se nos enxergassem como irmãos, e isso é ótimo. Não me sinto mal por andar de braços dados com ele, nem passear por aí. Sei que não nos forçarão um casamento às pressas.

Hoje, como combinamos, ele virá almoçar na casa da madrasta e exigirá que Ella se junte à nós. De início não achei uma boa ideia; Ella pode se sentir mal com a situação, e a madrasta pode o expulsar da nossa casa, por ele tentar passar por sua autoridade máxima. Mas Diogo acredita que dará tudo certo, então não tenho muito o que fazer.

Hoje é sábado, e ele certamente não trabalhou na loja. Tenho mais certeza ainda quando chega, todo arrumado e perfumado. Fico na sala, observando enquanto Ella o recebe, sem um pingo de mudança. Ela o trata normalmente, e não cora uma vez sequer.

Já Diogo joga todo seu charme, a elogiando, sorrindo e mantendo contato visual. Ele faz tudo certo, do jeito que ensinei, e não desiste nem por um segundo. Mas eu sei, se Ella ainda não deu de cara com o Príncipe, logo acontecerá, e não poderei fazer nada contra isso. Já está tudo predestinado, e mesmo que eu e Diogo tentemos reverter as coisas, não obteremos sucesso.

O grande relógio de madeira toca ao meio dia, e Ella nos chama para o almoço. A madrasta se senta na cabeceira da grande mesa, se esforçando para sorrir e não reclamar de nada. Seguro nessa pequena esperança de que, para manter as aparências, ela não fará um escândalo quando Diogo sugerir que Ella se junte à nós.

Me sento de frente para Evangeline, à esquerda da madrasta. Diogo se senta ao meu lado, parecendo nervoso. Pergunto com os olhos, se ele está bem, e ele apenas dá um leve balanço com a cabeça, negando. Diogo está nervoso, provavelmente por ter reparado que seus avanços não surgiram efeito com Ella.

A madrasta faz uma breve oração, somente para se aparecer, e então a comida é servida. Diogo tenta puxar assunto com Evangeline, enquanto Ella nos serve silenciosamente, mas a garota não entende porquê ele pergunta qual seu livro preferido. Ela acaba dizendo que ler é para homens, e isso faz a mesa ficar em silêncio mortal.

Diogo me contou que garotas da nossa idade podem ser educadas em casa, com o básico, se possuírem dinheiro para isso. Nós fomos, e Ella também, mas ainda é um tabu. Poucas moças tem o hábito da leitura, e na maioria das vezes são rejeitadas.

A irmã feia é conhecida por ter esse hábito, e é motivo de chacota, quando a Madrasta e Evangeline estão cansadas de Cinderela. Eu não me importo, e também não me importei com os olhares que me lançaram, quando fui na livraria noutro dia. Não vou ficar sem ler por causa de uma cultura machista. Eles que queimem no inferno.

O Que Os Contos Não ContamOnde histórias criam vida. Descubra agora