4. Ayla

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Levaram apenas dois dias para eu me apaixonar pelo David, mais dois para pensar se contava para alguém ou esquecia essa ideia, e mais dois para descobrir que minhas irmãs estavam me enganando. Mas isso foi ontem, hoje descobri que as duas também gostam dele.

Se antes eu tinha um motivo infantil, hoje tenho dois motivos: um infantil e um fútil, para não querer ficar nem na mesma sala que elas. Foi o que minha mãe disse, mais cedo, depois de me ouvir gritar pela casa como uma louca.

Mamãe não é daquelas que briga e grita com a gente, muito pelo contrário. Sempre que estamos erradas ela diz a frase certa para nos sentirmos mal e pensarmos naquilo. Sua mão pesa em nossa consciência como uma palmada na bunda. É o único momento que mamãe fica séria, e o único que me sinto mais próxima dela.

Ela é espontânea, divertida e alegre. Está sempre de bom humor e cantando o dia inteiro. Íris é exatamente igual à ela, mas eu e Eloise somos mais caladas. Às vezes eu me solto mais, mas nunca demais. Gosto de ser séria e passar respeito e confiança através disso.

Eloise é calada por conta do mau humor, está sempre reclamando de algo ou sendo sarcástica, mas sei que é tudo fachada. Mais que a minha. Ela nos ama, até a mim, e está sempre ajudando todo mundo. O problema é que ela quer ser durona e sabe que não é fácil assim.

Eu também sei que não é fácil assim. Ser perfeita, seguir a moda, estudar, e ser referência em todos os lugares por onde vou. Não é fácil, mas é o que escolhi para mim. E uma das minhas metas esse ano é namorar um cara do terceiro.

Eu nunca namorei, nem sequer dei um beijinho e vivo mentindo sobre isso para todo mundo. Mas esse ano eu prometi a mim mesma que não posso passar sem um namorado. E ele tem que ser do terceiro.

Eu só não contava com a entrada de um nerd, jogador de xadrez e gato pra caramba, no terceiro ano. Eu fiquei um pouco indecisa se dava uma chance para ele, ainda mais quando recebi umas cartinhas, nem tão anônimas assim, dele. Mas ontem eu ouvi uma conversa da Eloise com Íris, e descobri que as duas é quem me mandavam as cartas. E também mandavam para ele.

E o pior, hoje descobri que as minhas queridas irmãs também estão começando a gostar dele. E isso foi o fim. Gritei, igual uma louca mesmo, pela casa. Não liguei para nada nem para ninguém, só queria colocar tudo pra fora. E coloquei.

Disse tudo o que queria, e um pouco mais, sobre elas. Sobre serem mentirosas e egoístas. E as duas ouviram caladas, junto com mamãe. E quando acabei, Eloise me entregou o livro que tanto esperávamos.

E não posso esquecer da frase de mamãe:

— O sujo falar do mal lavado é fácil, mas eu queria ver o sujo se lavar, só para ensinar o mal lavado como que faz.

Olívia Rodrigues +100000.

Ayla Rodrigues -100000.

O que eu realmente queria ver é a reação do meu pai, se ele ainda estivesse aqui. Às vezes me pego imaginando o que ele faria, quais seriam suas reações para cada coisa que acontece com a gente. Mamãe eu sei que franze o cenho e com a voz baixa dá uma palmada no meu consciente. Mas e meu pai?

Já perguntei para minha mãe, quando era mais nova, como ele era, mas ela deixou tudo muito vago com apenas três palavras: Intenso, protetor e determinado. E para piorar, uma outra vez ela disse que era uma mistura minha e de Eloise. Eu simplesmente não consigo pensar no meu pai com traços de Eloise, principalmente com seus defeitos. Seria a mesma coisa que imaginar o Mickey como sequestrador; destruiria todos os anos de imaginações e sonhos.

Então como posso montar a imagem de meu pai se nem ao menos o conheço? Intenso, protetor e determinado.... Não sei se conheço alguém com esses traços para me basear. Mas seria bom, muito bom, conseguir imaginar 1% do que ele era, e do que ele poderia ser para mim.

De tarde, quando tudo está calmo o bastante para eu conseguir ler, pego meu novo livro e vou para o quintal. Me sento na grama mesmo e apoio minhas costas na goiabeira. Gosto de ler aqui, principalmente os livros com princesas e fadas. É um lugar mágico, calmo e lindo, como nos livros, e me envolve ainda mais nas histórias.

Meus pais construíram juntos, assim que compraram a casa uns anos antes de tudo acontecer; o acidente, a gravidez e o nascimento de nós três. Às vezes me perco no meio das flores e imagino que está tudo perfeito, meu pai está em algum lugar tocando violão, minha mãe lendo um livro de princesas e minhas irmãs jogando xadrez embaixo da goiabeira.

Mas como nada disso é real, não fico ruminando por muito tempo. Faço todo meu ritual, cheiro o livro, leio a última frase e todas as pequenas letrinhas de fora para dentro até chegar ao primeiro capítulo. Cinderela. Mas quem conta a história não é Ella e sim sua meia irmã, mais conhecida como "Irmã feia".

Nesse livro ela tem um nome. Ayla. Releio, para ter certeza de que realmente li certo. E, sim, li certo. A irmã feia se chama Ayla, como eu, o que é uma grande e curiosa coincidência. Continuo a leitura, mais curiosa que antes, e então tudo fica escuro.

O Que Os Contos Não ContamOnde histórias criam vida. Descubra agora