1. Ayla

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Eu tenho vergonha do que sou. Tenho vergonha de ter sido inseminada artificialmente, de ser filha de mãe viúva, de ter mais duas de mim e do fato de eu amar os contos de fadas, mesmo com dezesseis anos. Era para eu estar focada na minha carreira, mas só penso em príncipes e princesas.

Em casa sou eu mesma, afinal, minha mãe e minhas irmãs me conhecem desde sempre. Mas na escola sou o que eu quero ser; o que quero que as pessoas pensem que sou, ou pelo menos o que pretendo ser num futuro próximo e duradouro.

Popular, rica, estilosa e futura ganhadora do Oscar. É o que eu quero ser. E vou ser. Só preciso terminar a escola e conseguir um papel em algum filme que será indicado ao Oscar.

- Ayla?

Ouço a voz da mamãe e me viro, para olhá-la. Ela está na porta do quarto que divido com minhas irmãs, me olhando com um semblante preocupado.

- Aconteceu alguma coisa? - pergunto, já vasculhando na memória se perdi algo, ou fiz. Geralmente só entendo que fiz burrada um tempo depois do ocorrido.

- Te chamei para o jantar, três vezes, e você me ignorou - ela cruza os braços - Devo me preocupar?

- Desculpa! - me levanto rapidamente e fecho o notebook com um baque surdo - Já estou indo! Só estava dando uma olhada na coleção nova da Chanel.

Mamãe dá meia volta e vai na frente, em direção à sala de jantar. Quando chego encontro minhas irmãs Eloise e Íris em seus lugares à mesa, conversando provavelmente sobre algum livro.

- Lala, descobrimos uma nova adaptação de contos - Íris conta com os olhos brilhando de animação, assim que me sento - Pelo o que li na sinopse, parece que o livro foca em pessoas que mal aparecem nos contos. Achei legal e já comprei.

- Custou nossa mesada inteira - Elô avisa - Mas conseguimos comprar um para cada.

- Porque não comprou apenas um para nós três? - pergunto, surpresa por mamãe ter permitido que elas gastassem tanto.

- Mamãe achou melhor - Íris dá de ombros, abaixa o tom da voz e continua: - Por causa da sua briga com Eloise da última vez.

- A culpa não é minha se Elô não sabe dividir!

- EU sei dividir - Eloise se sobressalta do outro lado da mesa, tirando o foco da comida - Mas VOCÊ não queria me dar o livro que nem estava lendo!

- Eu estava com bloqueio! - aumento meu tom de voz, o que chama a atenção da mamãe, que vem da cozinha com o cenho franzido - Era pra você entender, Eloise, e não ficar me julgando.

- Já que está falando sobre o que fazer - ela balança a cabeça, com deboche - A senhorita deveria ser menos egoísta, o que acha?!

- Certo, já chega! - mamãe anuncia sem elevar o tom. Mas é forte o suficiente para nos calar - Comam em silêncio! Não quero escutar nem um pio, senão eu vou mandar cancelar a compra desse maldito livro.

Assentimos e nos calamos pelo resto do jantar, principalmente quando mamãe vem para a mesa comer.

Depois do jantar, já no quarto, fico de cabeça para baixo, pra fora da triliche, e me abaixo até ver Eloise em sua cama, embaixo da minha, lendo pelo celular. Ela me olha de esguelha, mas me ignora. Ela sabe que preciso dizer algo, como também sabe que não tenho nada para dizer.

Olho para a cama embaixo da Eloise e Íris me encara com seus olhos castanhos, assustadoramente iguais aos meus.

- Quando chega? - pergunto sobre o livro novo.

- Semana que vem - Íris responde.

Sorrio abertamente. Isso é um ótimo sinal, mesmo Eloise ainda me ignorando, o que não parece ser um bom sinal. Meu pressentimento é péssimo quanto a isso.

Volto a deitar normalmente e pego meu celular. Penso em mandar um emoji para Elô, mas desisto e passo parte da noite procurando informações sobre o livro na internet, mas não encontro muita coisa. O livro não é muito conhecido, nem ganhou prêmios. Pelo menos a sinopse é cativante e é isso que importa.

Eu odeio ter que depender da minha mãe para ir à escola. Ela está sempre de bom humor, principalmente de manhã, e fica cumprimentando todo mundo no tom mais alto que sua voz consegue alcançar. Eu morro de vergonha e corro para dentro da escola o mais rápido possível, tenho uma reputação a zelar e não será minha mãe quem vai tirar isso de mim.

Não mesmo!

Não ando com garotas fúteis e egoístas atoa. Finjo que somos amigas para conseguir ser o que quero.

Passo pelos corredores de queixo erguido, procurando pelas filhinhas de papai. Certamente estão em um dos quatro banheiros femininos da escola, se maquiando. E essa é a minha única diferença entre elas; eu não fico me maquiando. Não o tempo todo, nem com um quilo de base.

Minha maquiagem é rara e a mais leve possível. Gosto de mostrar como sou perfeita só por existir e causar inveja por isso.

No meio do corredor do segundo andar um garoto que nunca vi na vida cutuca meu ombro, com uma serenidade no olhar misturado com nervosismo. Com certeza é novo na escola.

- Desculpa - suas bochechas coram, constrangido com minha expressão dura. Não é qualquer um que pode falar comigo, não é? - Acho que me perdi, você pode me ajudar?

Penso mais tempo do que o aceitável mas cedo, por fim. É bom se preocupar com outras coisas de vez em quando, além do garoto ser um gato com esse cabelo castanho caindo nos olhos.

- Claro - mudo minha expressão drasticamente, dando meu melhor sorriso - Para onde precisa ir?

- Terceiro andar - ele me mostra uma folha um pouco amassada e cheia de rabiscos. A secretária da escola tem uma letra horrível - Me disseram que é onde ficam as salas do terceiro ano.

- Sim. Vamos, eu te levo - dou meia volta e vou na frente, em direção a escada principal.

Dou uns dois passos de distância, para que ele veja meu perfil mesmo com a blusa horrível de uniforme. Primeiro passo é a atração; ele precisa olhar e gostar de mim, claro. Ele é do terceiro ano. TERCEIRO ano. E gato, acima de tudo. Se ficarmos, serei melhor do que já sou, se for possível.

Não que eu ligue para o impossível. Impossível não existe, se existisse eu não o venceria com tanta facilidade.

Subimos os dois pequenos lances de escadas e então chegamos ao terceiro andar. Vim pouquíssimas vezes aqui, ainda sou do segundo ano e não tenho nada para fazer nesse andar, apesar de ser tentador. Mas sempre que venho me sobe um friozinho de excitação e ansiedade.

Não vejo a hora de acabar o ensino médio, ser adulta e poder fazer o que bem entender. Estou cansada disso tudo.

- Chegamos! - o olho por sobre os ombros - Qual é a sua sala?

- 303

Aponto para a última sala do corredor - É aquela - sorrio novamente - Boa sorte!

- Obrigado - ele dá uma risada sem graça, corando novamente - Vou precisar.

- A escola pode ser um pouco dura, mas depois você vai acabar gostando - estendo minha mão,a oferecendo para um aperto - Me chamo Ayla.

- David - ele retribui o aperto.

- Espero te ver mais vezes, David - sinto seu nome passar pelos meus lábios como uma melodia perfeita.

Ele dá um sorriso de lado e segue para sua sala depois de assentir silenciosamente, levando uma partezinha de mim.

O Que Os Contos Não ContamOnde histórias criam vida. Descubra agora