Logo pela manhã recebemos um bilhete do rei, nos convidando para jantar e passar a noite em sua casa.
Os pais de Joseph não se importaram com o convite, mas eu estava torcendo para que não me deixassem ir. Passei o dia pensando em mil desculpas para não voltar ao castelo da Fera, mas minha curiosidade de saber como Bela está foi mais forte.
Agora, descendo do cavalo de Joseph, me afastando de seus braços e sentindo o frio penetrar pelas minhas roupas, me arrependo de ter aceitado vir. Não quero nem pensar em como ficarei quando os grandes olhos da besta me fitarem, não quero sofrer por antecipação. Preciso focar na Bela.
— Não se preocupe, Íris. — o loiro segura minha mão e a aperta gentilmente. — Estando comigo, estará a salvo.
— Há coisas que me fazem ter medo. — falo mais baixo, para que as paredes não ouçam. — Mas tenho certeza que você me protegerá.
Seus olhos se iluminam quando sorri. Eu queria poder voltar aos seus braços e o abraçar bem apertado, mas não estamos mais em cima do cavalo, e não tenho motivos o suficiente para fazer isso sem passar por um grande constrangimento.
Respiro fundo e me desvio dele, pego a bolsa com minhas coisas, que fiz com a ajuda da Sra. Martinez, e vou na direção da porta da cozinha, com Joseph me seguindo. Entramos e o cheiro de comida me atinge como na outra vez. Os empregados, amaldiçoados a ficarem em formas de objetos, nos cumprimentam quando chegamos.
Não há a moça do bule, nem seus filhos xícaras. Ou se eles estão por ai, ainda não apareceram para mim.
— O rei os aguarda em seu escritório particular. — O relógio mal humorado nos avisa, quando passamos pelo corredor, em direção ao salão principal. — Há uma hóspede no castelo, e ele não quer que ela os vejam.
Abro a boca para contra-argumentar, mas Joseph alcança minha mão a tempo de a apertar e fazer pensar se devo mesmo falar algo. Não devo, chego à conclusão, então fico quieta enquanto somos guiados para o tal escritório.
Entramos em silencio profundo, temendo assustar a Fera. O rei percebe nossa chegada, mas continua parado de frente para a grande janela, olhando para seu jardim de rosas, que contrasta com o céu nublado. A cena seria linda e profunda, se eu não estivesse tremendo de medo.
O relógio fecha a porta e nos deixa ali, parados no meio da sala. Eu nem sei onde deixo minhas mãos, com medo de que algo caia só com a força dos meus pensamentos. Tudo aqui é muito rico e luxuoso, se algo quebrar por minha culpa, nem vendendo todos meus órgãos no mercado negro vou consegui pagar.
— Olá, amigos. — a besta nos cumprimenta, ainda de costas. Sua voz troveja pelo recinto, mesmo sendo calma e baixa. — Espero que a viajem tenha sido agradável.
— O clima fora das redondezas do castelo está muito agradável, Majestade. — Joseph conta. — Agradecemos pela preocupação.
— Por que a menina não fala? — ele vira a cabeça levemente, e me fita pelo canto dos olhos. — O gato comeu sua língua, princesa?
Engulo em seco e rezo para que qualquer deus desse universo me salve.
— Vossa Majestade. — faço uma rápida e desajustada reverência. — Me perdoe, não encontrei o momento oportuno.
— Quando quiser nos agraciar com sua doce voz e sua audaciosa inteligência, esse será o momento oportuno. — ele se vira e fica totalmente de frente para nós. Engulo em seco novamente. — Por ora, fico contente com a visita de ambos.
— Ficamos muito agradecidos pelo convite. — Joseph volta a falar, e aproveita para apoiar sua mão em minhas costas, sem perder a pose em momento algum. — Com certeza será um agradável jantar.
— Certamente. — a besta nos observa atentamente, mas não comenta nada sobre nossa proximidade. — Mandei prepararem aposentos para os dois, podem descansar antes do nosso jantar. Quando estiver tudo em ordem, mando chama-los.
O reverenciamos mais uma vez e, finalmente, saímos do escritório, que por maior que seja, com a Fera ali parecia muito pequena e abafada.
Somos guiados pelo rico e luxuoso castelo até nossos quartos, no que posso dizer ser o terceiro andar. O relógio caminha, estranhamente bem silencioso. E por o castelo ser escuro, quase não o enxergo, a não ser pelas velas e seu movimento.
Meu quarto fica ao lado de Joseph, mas pelo olhar do Sr. Relógio, escapulidas para o recinto ao lado está totalmente proibido. Ou só não é aceitável. É difícil saber o que realmente suas expressões querem dizer.
Quando entro no aposento preparado para mim, arregalo os olhos com tamanha riqueza. É simplesmente lindo e luxuoso e rico e aconchegante e grande. Eu poderia comparar facilmente com metade da minha casa, ou metade do apartamento dos Martinez. Mas os detalhes, decoração e o ouro.. Isso não tem comparação.
— Espero que esteja preparado conforme seu agrado, senhorita. — o relógio fala, da porta do quarto. Me viro para ele, e o encaro de queixo caído. — Posso lhe servir com algo mais?
— Sr. Relógio, nem em minha casa eu fui tão bem recebida. — solto uma risada nervosa e olho em volta mais uma vez. — Nunca nem cheguei perto de imaginar um lugar desses, muito menos que entraria... E dormiria!
— Se me perdoa a indiscrição, ouvi dizer que a senhorita é órfã...
Paro de rodar e engulo em seco. Merda, falei demais.
— É! — dou um sorriso amarelo e me sento no sofá rosê, que fica bem no centro do grande quarto. — Não se preocupe, fui adotada pelos Martinez. Eles são ótimos pais, e tem uma livraria, onde posso ler sem pagar nada.
— Imagino que sua vida anterior aos Martinez tenha sido pobre e solitária.
— Sim. — cruzo as pernas e tento manter a postura, como o relógio, que permanece na porta do quarto. — Mas passado é história, Sr. Relógio, daqui para frente é um mistério, e eu pretendo viver minha vida o melhor possível.
— Torço para que tenha um destino melhor que o meu, Srta. Martinez. Em breve não saberei mais quem eu era, nem o que sou. E não terei o mistério do futuro para desvendar.
— Tenho certeza que o senhor não se transformará em nada. — lhe dou um sorriso compreensivo e acolhedor. — Muito menos será esquecido. Ainda tem uma vida enorme pela frente para desvendar.
O relógio fica quieto por um momento, olhando para todos os lugares, menos para mim. Mas, por fim, faz uma breve reverência e sai do quarto, depois de fechar a porta.
Me levanto e vou até a janela, que dá para o jardim de rosas da Fera, e isso me faz lembrar do jantar, da besta e de Bela.
Olho para a trouxa de roupas que trouxe, contrastando com toda a riqueza do lugar. Mesmo que seja um jantar com o cara que me dá calafrios, eu desejo, só por um segundo, que eu não tenha que descer com as roupas surradas e costuradas nos pontos errados.
Mas vou, e de queixo erguido. É um livro, mas não meu, então não houve milagres ou magias, enquanto eu me arrumava. Para mim continua sendo vida real, eu continuo sendo a simples Íris e estar dentro de um conto de fadas não mudará nada.
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O Que Os Contos Não Contam
FantasyAyla, Eloise e Íris são trigêmeas, mas a única coisa em comum é o amor pelos livros de contos de fadas. Principalmente pelas adaptações. As três vivem em pé de guerra, sempre discordando uma da outra, mas quando Íris acha uma nova adaptação tudo mud...