Passo o jantar em silencio, mesmo com Vitório tentando diminuir a tensão, puxando assunto e tentando me fazer rir. Mas eu não consigo parar de pensar em seu beijo, e como eu me encaixei tão bem em seus braços; como foi certo e errado e rápido.
Eu não sou daqui, não posso simplesmente fazer planos de ir caçar com Vitório e sua família, depois que salvarmos o reino. Aqui, dentro do livro, não é meu lugar, e eu preciso voltar pra casa.
Já passei dos limites gostando da família da antiga Eloise, e fazendo amizade com Anastácia e sua tia. Não posso nutrir nenhum sentimento por esse caçador, sabendo que posso ir embora a qualquer momento, e que isso acabará com ambos.
Talvez eu esteja sendo precipitada, em pensar num futuro que pode nem acontecer, se eu ceder, mas é bom pensar sempre em todos os lados e ângulos. Minha mãe diria que é melhor prevenir do que remediar, e nesse caso não há remédio.
- Continuará a me ignorar? - ele pergunta pela manhã, enquanto arrumamos nossas coisas para voltar às buscas. - Me perdoe, eu não sabia que te ofenderia... Eu... Eu juro para a senhorita que não fiz por mal.
- Aposto que o senhor beija todas as garotas do reino, sem a permissão delas, e depois diz que não foi por mal... - comento, com a intenção de o chatear.
- Não! - ele exclama. - Eu nunca faria isso, mas... Foi mais forte que eu, e... Eu não consegui me segurar. - semicerro os olhos e cruzo os braços. Ele volta a falar: - Talvez a senhorita seja uma fada? Eu fiquei encantando, como se estivesse preso num feitiço...
- Não sou uma bruxa.
- Eu disse fada, srta. Eloise...
- Eu não sou uma fada! -- Dou de ombros e começo a andar pelo caminho indicado anteriormente. - E não te enfeiticei. Pode pensar numa desculpa melhor, e que não me envolva como motivo da sua vontade.
- Não acredita em mim? - ele anda ao meu lado, me fitando com seus grandes olhos pretos.
- Como o senhor não acreditou, e creio que ainda não acredita, que quero ajudar à princesa e o reino.
- Não há comparação! Nesse reino desconfiamos de todos, mas... Eu juro que me senti enfeitiçado pela senhorita.
- O senhor já beijou outras moças, sr. Lund?
- N-não muitas...
- Não se sinta envergonhado, eu também era BV até ontem à noite. Mas, voltando ao foco do assunto, o que o senhor sentiu foi uma atração. O que eu acho normal, sabe? Eu sou uma garota, e você um homem, e estamos sozinhos nessa floresta há tempo demais, então...
- BV? Atração?
- BV significa boca virgem, um resumo para quem nunca beijou antes. - o olho pelo canto do olho e sorrio, achando graça de sua testa franzida, demonstrando sua confusão. - E eu estaria mentindo se negasse os sentimentos recíprocos que tive com relação a atração.
- Então... Por que não retribuiu?
- Não é o certo, e o senhor sabe. O chamado da natureza não é mais importante que meus N motivos para não retribuir seus avanços.
- Eu não entendo... Pensei que a senhorita não ligasse para o que as pessoas falam.
- Não ligo, sr. Lund, e certamente a minha honra não é um dos motivos.
- Posso saber quais são? Logo na minha primeira investida, no primeiro beijo que dei em toda a minha vida, fui rejeitado. Creio que mereço uma explicação do por quê.
- Há coisas que não precisamos saber.
- Não sou um torrão de açúcar; eu aguento.
Reviro os olhos. Vitório é persistente e certo do que quer, o que eu julgo como ótimas qualidades; menos quando pessoas desse tipo enchem meu saco, como ele está fazendo agora.
Não dá para simplesmente dizer ao caçador, que há dias atrás queria me matar, que sou humana e ele um personagem de livro. Nem sei se ele sabe o que é um livro.
Acho que acabei de julgar a inteligência do caçador Vitório Lund. Que a feminista que habita em mim me perdoe!
- Não é tão simples assim...
- O que pode ser? A senhorita gosta de mulheres? Não precisa ficar surpresa, eu sei que isso acontece. Ou... Quer seguir a vida como freira? Está prometida? Vamos, não posso viver sem saber. O que direi aos meus netos, quando perguntarem como fora meu primeiro beijo?
- Diga que foi um engano, que nunca deveria ter acontecido. Não comigo.
- Eu não me arrependo nem um segundo de ter lhe beijado, srta. Eloise. Eu aprendi que, se eu tive vontade, que eu faça e não me arrependa.
- Espero que não tenha vontade de me estuprar também. - murmuro comigo mesma.
- O que a senhorita disse?!
Bufo e paro no lugar, com os braços erguidos em rendição. - Não aguento mais! Eu vou contar, sr. Lund, mas juro que se por um acaso o senhor contar para qualquer outra pessoa, eu o corto em pedacinhos e dou para as onças!
Ele também para de andar e me encara com os olhos arregalados e as sobrancelhas erguidas.
Que se dane!
Conto tudo para ele, como fiz com Anastácia, e tudo o que aconteceu até aqui. Voltamos a andar, mas dessa vez quem preenche o silencio sou eu, e com o coração na mão.
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O Que Os Contos Não Contam
FantasiaAyla, Eloise e Íris são trigêmeas, mas a única coisa em comum é o amor pelos livros de contos de fadas. Principalmente pelas adaptações. As três vivem em pé de guerra, sempre discordando uma da outra, mas quando Íris acha uma nova adaptação tudo mud...