38. Eloise

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Passo o jantar em silencio, mesmo com Vitório tentando diminuir a tensão, puxando assunto e tentando me fazer rir. Mas eu não consigo parar de pensar em seu beijo, e como eu me encaixei tão bem em seus braços; como foi certo e errado e rápido.

Eu não sou daqui, não posso simplesmente fazer planos de ir caçar com Vitório e sua família, depois que salvarmos o reino. Aqui, dentro do livro, não é meu lugar, e eu preciso voltar pra casa.

Já passei dos limites gostando da família da antiga Eloise, e fazendo amizade com Anastácia e sua tia. Não posso nutrir nenhum sentimento por esse caçador, sabendo que posso ir embora a qualquer momento, e que isso acabará com ambos.

Talvez eu esteja sendo precipitada, em pensar num futuro que pode nem acontecer, se eu ceder, mas é bom pensar sempre em todos os lados e ângulos. Minha mãe diria que é melhor prevenir do que remediar, e nesse caso não há remédio.

- Continuará a me ignorar? - ele pergunta pela manhã, enquanto arrumamos nossas coisas para voltar às buscas. - Me perdoe, eu não sabia que te ofenderia... Eu... Eu juro para a senhorita que não fiz por mal.

- Aposto que o senhor beija todas as garotas do reino, sem a permissão delas, e depois diz que não foi por mal... - comento, com a intenção de o chatear.

- Não! - ele exclama. - Eu nunca faria isso, mas... Foi mais forte que eu, e... Eu não consegui me segurar. - semicerro os olhos e cruzo os braços. Ele volta a falar: - Talvez a senhorita seja uma fada? Eu fiquei encantando, como se estivesse preso num feitiço...

- Não sou uma bruxa.

- Eu disse fada, srta. Eloise...

- Eu não sou uma fada! -- Dou de ombros e começo a andar pelo caminho indicado anteriormente. - E não te enfeiticei. Pode pensar numa desculpa melhor, e que não me envolva como motivo da sua vontade.

- Não acredita em mim? - ele anda ao meu lado, me fitando com seus grandes olhos pretos.

- Como o senhor não acreditou, e creio que ainda não acredita, que quero ajudar à princesa e o reino.

- Não há comparação! Nesse reino desconfiamos de todos, mas... Eu juro que me senti enfeitiçado pela senhorita.

- O senhor já beijou outras moças, sr. Lund?

- N-não muitas...

- Não se sinta envergonhado, eu também era BV até ontem à noite. Mas, voltando ao foco do assunto, o que o senhor sentiu foi uma atração. O que eu acho normal, sabe? Eu sou uma garota, e você um homem, e estamos sozinhos nessa floresta há tempo demais, então...

- BV? Atração?

- BV significa boca virgem, um resumo para quem nunca beijou antes. - o olho pelo canto do olho e sorrio, achando graça de sua testa franzida, demonstrando sua confusão. - E eu estaria mentindo se negasse os sentimentos recíprocos que tive com relação a atração.

- Então... Por que não retribuiu?

- Não é o certo, e o senhor sabe. O chamado da natureza não é mais importante que meus N motivos para não retribuir seus avanços.

- Eu não entendo... Pensei que a senhorita não ligasse para o que as pessoas falam.

- Não ligo, sr. Lund, e certamente a minha honra não é um dos motivos.

- Posso saber quais são? Logo na minha primeira investida, no primeiro beijo que dei em toda a minha vida, fui rejeitado. Creio que mereço uma explicação do por quê.

- Há coisas que não precisamos saber.

- Não sou um torrão de açúcar; eu aguento.

Reviro os olhos. Vitório é persistente e certo do que quer, o que eu julgo como ótimas qualidades; menos quando pessoas desse tipo enchem meu saco, como ele está fazendo agora.

Não dá para simplesmente dizer ao caçador, que há dias atrás queria me matar, que sou humana e ele um personagem de livro. Nem sei se ele sabe o que é um livro.

Acho que acabei de julgar a inteligência do caçador Vitório Lund. Que a feminista que habita em mim me perdoe!

- Não é tão simples assim...

- O que pode ser? A senhorita gosta de mulheres? Não precisa ficar surpresa, eu sei que isso acontece. Ou... Quer seguir a vida como freira? Está prometida? Vamos, não posso viver sem saber. O que direi aos meus netos, quando perguntarem como fora meu primeiro beijo?

- Diga que foi um engano, que nunca deveria ter acontecido. Não comigo.

- Eu não me arrependo nem um segundo de ter lhe beijado, srta. Eloise. Eu aprendi que, se eu tive vontade, que eu faça e não me arrependa.

- Espero que não tenha vontade de me estuprar também. - murmuro comigo mesma.

- O que a senhorita disse?!

Bufo e paro no lugar, com os braços erguidos em rendição. - Não aguento mais! Eu vou contar, sr. Lund, mas juro que se por um acaso o senhor contar para qualquer outra pessoa, eu o corto em pedacinhos e dou para as onças!

Ele também para de andar e me encara com os olhos arregalados e as sobrancelhas erguidas.

Que se dane!

Conto tudo para ele, como fiz com Anastácia, e tudo o que aconteceu até aqui. Voltamos a andar, mas dessa vez quem preenche o silencio sou eu, e com o coração na mão.

O Que Os Contos Não ContamOnde histórias criam vida. Descubra agora