7. Ayla

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— Ayla, acorde agora, senão eu vou jogar um balde de água fria na sua cabeça!

Não consigo abrir meus olhos, mas sei que tem alguém me chamando. Chamando não, gritando.

Não sei quem é, não conheço essa voz, mas sei que essa pessoa me conhece e está muito brava por eu não estar acordando. Mas está tão difícil... É como se o sonho estivesse me prendendo, e eu gosto disso; Morfeu também deve estar gostando muito de me ter em seu mundo.

— AYLAAAAA!!!

Abro meus olhos, finalmente, e encaro o teto branco encardido. Tem uma garota que parece ter minha idade pairando acima de mim, me encarando com um semblante sério. Seu cabelo castanho e ondulado, que cai em cascata em volta de seu rosto até a cintura, está bagunçado como se tivesse acabado de acordar.

Nunca vi essa garota, mas é como se eu a conhecesse há muito, muito tempo. Minha mente está confusa, mostrando lembranças que não são minhas, mas que aparentam ser não sei como.

— Continuará me encarando como se eu fosse um fantasma ou se levantará? — ela cruza os braços, perdendo o pouco da paciência que ainda lhe resta.

Me sento na cama e olho em volta. Não é meu quarto, nunca estive aqui, mas sinto que, no fundo, sei muito bem onde estou. Mesmo assim não reconheço essa garota, nem esse lugar, e...

Olho para sua roupa.

Parece um pijama do século retrasado, branco, comprido e largo. E a decoração do quarto também parece ser de um outro século bem longe do meu, mas é como se os móveis e toda a quinquilharia fossem novas e bem conservadas.

— Eu... — consigo falar, apesar de estar assustada e confusa — Eu... — engulo em seco, voltando a olhá-la — Desculpa... Estou um pouco confusa.

— É perceptível! — ela diz, exasperada — Mas não é novidade. Você é uma porca gorda e lerda — bufa, indo para outro canto do quarto e se sentando na penteadeira — Mamãe avisou, ontem à noite, que devemos ser as primeiras a encomendar os vestidos com a modista e o alfaiate. O aniversário do príncipe é em alguns meses e logo chegarão os convites. Se não encomendarmos os vestidos logo será impossível a entrega no prazo. Quer dizer, podem até entregar, mas não com perfeição e exclusividade.

Ela continua tagarelando e eu fico cada vez mais confusa. Como vim parar aqui? É o que não consigo parar de me perguntar.

Me levanto e sinto o tapete espetar meus pés. Ao lado tem um tipo de pantufa, então as calço, prevendo que o piso de madeira esteja frio. Em um lado do quarto tem uma grande janela de madeira, que está entreaberta. Consigo ver algumas árvores, a luz do sol e escutar os pássaros.

Pássaros... Na minha casa eu só consigo ouvir o trânsito e minha mãe cantando, quando acordo. Os pássaros que aparecem no quintal não ficam por muito tempo, e a sua maioria são pombos. E eles não cantam. Não assim.

Mamãe...

Me lembro da minha família, o que me deixa mais nervosa. O que será que aconteceu com elas? Será que perceberam que sumi? Vou até a janela e a abro. A paisagem é linda, mas totalmente diferente do que eu imaginava.

Parece que estou num tipo de sítio. Abaixo tem alguns animais, porcos, galinhas, alguns patos e um cavalo marrom cansado. Mais à frente, depois da cerca, tem um grande campo, com flores e algumas árvores. Depois desse campo tem uma floresta e mais ao longe morros e colinas.

É muita vegetação, bem maior das que já vi na minha vida inteira. Posso apostar que além do que posso ver existem mais quilômetros de mata, mesmo que os jornais gritem diariamente sobre o desmatamento. É lindo, incrível e impossível. Pelo menos as matas brasileiras não seriam assim, não em 2020.

— Porque está arfando? — a garota pergunta atrás de mim, me dando um susto.

Me viro e a encaro. — Eu... Se eu te falasse que não sou daqui, você acharia estranho?

— Qualquer coisa que venha de você eu acho estranho, Ayla — ela ri com escárnio — Vamos, me diga, você bebeu o whisky da mamãe?

— Eu não...

— É a única opção — ela dá de ombros e volta a se sentar na penteadeira antiga, que não parece nem um pouco antiga — Você deve ter bebido escondida e agora não se lembra. Mas não se preocupe, não vou dedurar para a mamãe, porque eu também bebo às vezes.

Suspiro, já convencida que, quem quer que seja essa garota, nunca vai acreditar em mim. Volto a olhar para o lado de fora da janela, tentando pensar em algo que eu possa fazer. Tenho que voltar para casa seja lá como.

— Ande, Ayla, senão vamos perder o café da manhã. Cinderela ainda não apareceu, então quer dizer que está na cozinha ou com a mamãe.

Volto rapidamente meu olhar para ela — Cinderela?

A garota, pelo o que entendi é minha irmã, e revira os olhos enquanto faz um gesto com as mãos, para eu deixar para lá.

Mil coisas continuam passando pela minha cabeça: Será que é a mesma Cinderela dos contos? Isso é possível ou é coisa da minha cabeça?

Não preciso pensar muito, já que outra garota entra no quarto, depois de bater na porta. Ela é loira, mas seu cabelo está preso por um lenço. Seu rosto é delicado e transmite gentileza, apesar de estar um pouco sujo com cinzas, que suponho serem das lareiras que tem na casa, igual a do quarto.

Cinderela!

É ela, e eu não sei como é possível, mas é ela.

— Bom dia! — ela dá um sorriso tímido, percebendo que estou a encarando demais — Precisa de ajuda para se vestir?

— Ela está com perda de memória — a morena explica enquanto penteia o cabelo — A ajude primeiro com as roupas, enquanto arrumo meu cabelo.

— Claro. — Cinderela vai até uma porta, noutro canto do quarto, a abre e entra. Uns segundos depois volta com um grande vestido pêssego e algumas outras coisas nos braços.

Fico calada enquanto ela me veste com aquilo tudo, pensando em como vim parar aqui. Como vim parar dentro do livro, se é que foi realmente isso que aconteceu. Minha cabeça não para um segundo, mas consigo supor que, de algum jeito, vim parar dentro do livro da Cinderela e sou a irmã feia.

Estou dentro de um livro e sou uma personagem. Meu Deus, como saio daqui?

Eloise pensaria num plano e Íris, depois de chorar um pouco, teria uma ideia brilhante e corajosa. Sinto falta delas, mesmo não tendo passado muito tempo desde a última vez que as vi; mas sinto. E sinto falta da mamãe também.

Ela saberia o que fazer e como me acalmar. Mamãe sabe de tudo, mas não está aqui para me ajudar. Não tenho ninguém que possa me ajudar. Estou por conta própria e com o peso nas costas por ter brigado com minha família na última vez que nos vimos

O Que Os Contos Não ContamOnde histórias criam vida. Descubra agora