54. Íris

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Andamos lentamente pelo castelo, de um canto ao outro, até chegarmos nos aposentos reais. A Fera fica um pouco sem jeito, mas me deixa entrar.

O que vejo me lembra de tudo o que li e assisti. É realmente uma bagunça, com coisas sujas, quebradas e rasgadas nos cantos.

Um quadro do tamanho da parede, do rei, está todo arranhado, mas consigo ver pouca coisa. Seus olhos azuis são os mesmos, e seu rosto oval é emoldurado por algumas mexas ruivas, que se soltaram da presilha.

Passo pela cama com dossel, totalmente acabada, com as pernas e metade do dossel quebrados e os lençóis rasgados. No centro do quarto há um sofá marrom, também rasgado, e num canto uma mesa redonda, com três cadeiras, todos quebrados e com as peças espalhadas pelo chão.

E, enfim, perto da porta que dá para a sacada do quarto, está a rosa vermelha, pendendo apenas uma única pétala e quase sem brilho nenhum. Me aproximo, observando a Fera pela minha visão periférica, pronta para correr a qualquer momento.

Ele não me impede de me aproximar, em vez disso se senta na ponta da cama e começa a falar sobre como está sofrendo por ser um monstro. Eu não ligo e pouco me importo; ignoro tudo o que diz e fico observando a rosa, esperando que a última pétala caia logo.

É uma agonia, sinto cada segundo como se fossem dias. Tenho vontade de jogar tudo para o alto e pular da sacada. É uma mistura de raiva com ansiedade, mas eu sei as controlar muito bem.

— Alguém entrou nas minhas terras sem minha autorização!

Dou um pulo quando sinto a besta ao meu lado, depois de ter atravessado o quarto sem que eu percebesse. Ele vai para a sacada e olha os arredores do castelo, procurando o intruso. Corro para o seu lado e vejo o momento exato em que três cavalos entram correndo, cada um carregando duas pessoas.

A Fera ruge, me fazendo tremer e me segurar na mureta. Mas o que me choca mesmo é quando um dos cavaleiros olha para cima, diretamente para mim.

Não é um cavaleiro, é minha irmã. É Eloise.

— Vou dar um jeito neles, princesa — a besta volta para o quarto, pronto para mata-los. — fique aqui e se esconda, se for preciso.

— NÃO! — corro atrás dele. — Por favor, não faça nada!

Ele se volta para mim, com o cenho franzido. Engulo o meu medo em seco.

— Por que eu não faria isso? Eles entraram na minha casa sem minha permissão.

— Por favor! — toco seu braço, sem saber como convence-lo. — É minha irmã, não faça nada com ela.

— O que sua irmã faz aqui? — sua voz sai arranhada, pela força de se manter calmo.

— E-eu não sei! — gaguejo. — Pensei que estivesse em casa, n-não sei o que faz aqui. Mas, eu te imploro, p-poupe sua vida. Eu f-faço o que Sua Majestade quiser.

Ele me observa atentamente com seu cenho franzido. Eu tento demonstrar com meu olhar, tento pedir misericórdia, pedir que não faça nada. Mas no fundo me pergunto o que ofereceria para salvar minha irmã, e se me sentiria melhor por isso, ou menos mal.

— Princesa, eu não posso... — ele bufa e dá um passo para trás. — E se a levarem? O que será de mim? Certamente escolherá sua família ao invés de mim, como Bela. Como todas as mulheres que passaram por minha vida.

— Eu nunca poderei lhe fazer completamente feliz, Majestade, mas se ficar significa a salvação de minha irmã e as pessoas que a acompanham, então fico.

A besta me fita com intensidade, absorvendo o que eu disse. Acho que ele já entendeu que eu faria qualquer coisa pela minha família, não por ele, e que eu menti esse tempo todo.

Escuto paços e me preparo. A Fera se vira e um segundo depois os seis visitantes entram. Todos estão de capa e apenas Eloise, que vem na frente, está com o capuz abaixado.

— Íris! — Elô sorri, feliz e aliviada por me ver. Eu tento sorri, mas estou preocupada demais para isso. — Iris? Ele lhe fez algo?

Rapidamente nego com a cabeça. — Está tudo bem.

— É assim que tratam Sua Majestade? — A Fera se dirige a eles, com uma mistura de rugido. — Vocês entram na minha casa sem minha permissão e ainda fingem não me ver?

— Não sou sua súdita — minha irmã empina o queixo e o encara.

— Majestade — uma das pessoas faz uma reverencia após abaixar o capuz vermelho.

Prendo a respiração ao perceber que é Bela. Se ela se declarar estarei perdida, e minhas irmãs também. Não entendo porquê a trouxeram, a Rainha disse que minhas irmãs sabem do feitiço.

— Bela? O que faz aqui?

— Vim lhe contar a verdade sobre meus sentimentos — ela se ergue e o fita com o olhar apaixonado. — Assim o libertarei da maldição e, se assim for seu desejo, poderemos ficar juntos.

— Não! — grito. Todos se voltam para mim. — Não pode fazer isso!

— Por quê? — A fera franze o cenho.

— Por... Por...

— Íris, não! — outra pessoa abaixa o capuz. Meu queixo cai quando reconheço Ayla. — Não faça isso! Deixe que Bela se declare, deixe que a história siga seu rumo sem nossa interferência.

— Mas... A Rainha, ela...

— Não faça isso -- minha irmã avisa, convicta. — Está tudo sob controle, você precisa acreditar.

Pisco e volto meu olhar para a Fera, que nos observa atentamente.

Meu medo de ficar nesse mundo é gigante, mas enterro tudo isso e fico quieta. Minhas irmãs vieram e exigem que a história siga seu rumo, que o mal não prevaleça, então preciso seguir seu pedido. Elas não se arriscariam atoa.

— Adam — Bela se volta para a besta, com paixão em seu olhar. — Eu não te abandonei, apenas fui visitar meu pai. E agora voltei, para você, porque o amo. O amo de todo meu coração, completamente, de dentro para fora e... Mesmo que isso não ajude, continuarei a te amar pelo o que você é.

— Bela... — ele fica completamente focado nela, mas eu não dou muita atenção; Joseph abaixou seu capuz e está fitando o casal do outro lado do quarto, com o olhar triste.

Me xingo mentalmente por sentir alegria e alívio em vê-lo. Ele parece ser o mesmo, mas não parece me notar, nem demonstra alívio em me ver. É como um soco no estômago.

Percebo tudo em questão de segundos. Tudo o que ele fez, tudo o que eu não percebi. Era isso o que a Fera quis dizer. Estou acabada e tudo isso é muito para mim.

Pouco me importo com o novo, ou velho casal. Não me atento à explosão de luz, nem com a transformação. Eu falhei, não consegui cumprir o combinado e não sei se vou conseguir voltar para casa. É isso que me importo, com minha falha; mas não a única falha.

Eu tive razão em sentir raiva, em me sentir traída. Joseph me enganou, ele nunca me amou.

Sinto as lágrimas descerem pela minha bochecha e logo depois um tremor seguido por um soluço. Eu nunca vou conseguir sair daqui, não vou rever minha mãe, nem o clube de xadrez. Não vou para a faculdade, não vou ter uma vida.

Deixo meu corpo cair, sem forças para segurar todo esse peso. O sinto se chocar contra o piso gelado, sinto a dor aguda que passa da cabeça, onde bateu primeiro, até a ponta dos pés. Mas não faço nada além de chorar.

Eu falhei, eu falhei, eu falhei...

Me perdoe, mamãe.

O Que Os Contos Não ContamOnde histórias criam vida. Descubra agora