57. Íris

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Eu não estou pronta.

Passei o dia inteiro desejando esse momento, e ainda tenho certeza que quero voltar para casa. Mas quando Malévola apareceu minha ficha caiu; é agora ou nunca, pensei.

Vi Ayla se despedir aos prantos da única pessoa que ela se apaixonara a ponto de mostrar a si mesma sem medo, e também vi Eloise se despedir de um futuro que sempre sonhou para si. E tudo por minha causa.

Acreditei fielmente que Joseph me abandonara, e quando tive a oportunidade de confronta-lo fugi, agora não tenho mais tempo. Não acho isso justo, essa coisa que eu mesma fiz. Ele merece um adeus, não é?

— Posso dar mais um minuto para se despedirem — Malévola avisa, me fitando como se lesse meus pensamentos. — Se quiserem.

Todos os pares de olhos se voltam para mim, incluindo os azuis de Joseph. Engulo em seco e desço do cavalo com a ajuda de Vitório.

— Não precisamos. — respondo, de queixo erguido. — Estamos prontas para ir.

Caminho até Eloise, que está ao lado da Fada. Observamos Ayla lançar um olhar triste para Diogo e soltar sua mão, como se uma cola estivesse os impedindo de ir mais rápido.

Minha vontade é olhar uma última vez para os olhos azuis de Joseph, mas me seguro, focada nas pequenas pedras no chão.

Quando minha irmã vem para o nosso lado, meu coração dá um salto em expectativa. Não ouso me lembrar de tudo o que aconteceu, mesmo que as lembranças estejam fazendo cócegas nas portas da minha mente. Foco apenas em minha casa, minha mãe e como minha vida era.

— Vocês precisam ler o feitiço em voz alta — Malévola explica, enquanto abre o grosso e largo livro. Sua capa parece ter sido feita com algum tipo de couro, mas com apenas a lua iluminando a estrada fica difícil ter certeza. — Enquanto estiverem lendo estejam focadas e certas do que querem. O que desejarem será realizado, e não terá volta.

— Posso fazer uma pergunta? — Ayla pede e a fada confirma. — Podemos voltar para dentro do livro?

— Não. O feitiço só funciona uma vez, tanto para vir, quanto para voltar. O texto estará lá, mas serão apenas palavras.

Lalá assente e desvia seu olhar para Diogo rapidamente. Acontece tão rápido que fico em dúvida se realmente aconteceu.

— Algo mais? — Malévola nos observa, atentamente. — Espero que estejam cientes que precisam partir sem levar nada, assim como vieram. Apenas suas almas podem atravessar, e não precisamos de mais problemas, certo?

Elô foca seus olhos azuis em mim e sussurra: — Fale com ele uma última vez, não parta sem ao menos um abraço. Ele te ajudou, e em algum momento vocês se amaram. Não pode agir como se não tivesse acontecido nada!

Pisco, atônita. Ela tem razão. Elô sempre tem razão, mas eu simplesmente não consigo. O que Joseph fizera comigo se tornou tão real, quando finalmente percebi, e me senti tão burra em não ter notado antes, que não posso olhar para ele com os mesmos olhos de hoje de manhã. Já não sou a mesma, e suspeito que ele também não.

Balanço a cabeça e minha irmã entende, não dizendo mais nada. Agradeço sua ajuda, mas não é suficiente.

— Estamos prontas — Elô avisa à fada.

Prendo minha respiração quando ela estende o livro, e meu coração bate no ritmo mais acelerado que já ouvira em toda a minha vida; é como se eu tivesse acabado de correr uma maratona.

Parece certo, e também errado. Há coisas que ainda preciso resolver, mas a doce esperança de voltar para casa é maior.

Encho meus pensamentos com lembranças de casa, da mamãe e da escola. Penso nos domingos pela manhã, todos dentro da cozinha com minha mãe cantando, contando piadas ruins e dando conselhos. Lembro das minhas competições, e também de como eu e minhas irmãs implicávamos umas com as outras.

Encho meus pulmões, preparada para recitar os três pequenos versos, preparada para deixar os contos e seguir minha vida da melhor forma possível.

— Íris! — dou um pulo e me viro. Joseph soltou o cavalo e corre até mim. — Entendo que precisa ir, mas... — ele ofega, quando para na minha frente. — Não se esqueça de mim — e acrescenta num sussurro: —, não se esqueça que houve um nós.

— Como poderia me esquecer? — pergunto no mesmo tom. Me seguro para não chorar, mas parece a coisa mais difícil do mundo.

— Me perdoe ter atrapalhado, m-mas... — ele respira fundo, para recuperar o ar. — você está indo e eu fiquei desesperado, achei que... Meu Deus, apenas não me odeie, eu nunca faria mal algum à você!

Assinto veemente e o abraço com força. Seus braços esguios me apertam enquanto ele beija o topo da minha cabeça.

— Eu queria ter mais tempo para me explicar — ele continua, com o rosto enterrado em meus cabelos. —, dizer o porquê de tudo que fiz... Eu... Eu tinha prioridades, mas agora estou percebendo que foram todas em vão. Meu pai estava certo em me comparar com meu avô, Íris. Agora vejo isso, e me arrependo do sofrimento que te causei.

— Eu te amo. — sussurro, com meu rosto enterrado em seu peito, e me livro de uns bons quilos que carregava nas costas.

Não espero que ele responda, nem tenho certeza se escutou, e me afasto tão rápido quanto fora para tomar a atitude.

— Não se preocupe, ficará tudo bem. — digo num tom mais claro, e convicto.

Seus braços pendem solitários ao lado de seu corpo quando me volto para Malévola e o livro.

Assinto, confirmando que podemos prosseguir, e as três respondem da mesma forma. Respiro fundo e abro minha boca para proferir o feitiço:

Que as palavras atinjam sua alma
Que as páginas te façam viver
E que o livro realize seu desejo.

Nada explode, nem brilha. Apenas pisco quando sinto meu corpo repousar em meu colchão e a familiar maciez de meu cobertor tocar minhas pernas; até o ar é diferente.

Me sento, um pouco atordoada, e ouço um baque surdo. Olho para o chão e lá está o livro. Me abaixo e o pego, pronta para lê-lo de verdade, mas não agora. Primeiro preciso abraçar minha mãe, e conversar com minhas irmãs sobre cada milésimo de segundo.

Saio do quarto no momento em que a campainha de casa toca. Sorrio, com o que era apenas lembrança e agora se tornou real, feliz demais por estar de volta. O corredor está no lugar, e a sala é a mesma. sorrio mais ainda por perceber que não passara nem um segundo.

Vejo minha mãe sair da cozinha e ir até à porta da frente, e também vejo Ayla e Eloise entrando pela porta do quintal, tão atordoadas quanto eu.

— Ai, meu Deus! — Ayla sussurra, quando chegamos uma perto da outra. — Não consigo acreditar que voltamos!

— Será que o tempo passou de forma igual? — Eloise questiona, olhando tudo em volta.

Dou de ombros e sigo atrás da mamãe. — Podemos ver isso agora!

Solto uma risada que é silenciada assim que piso na sala e vejo quem está na porta de casa, com minha mãe. Não apenas um, mas três.

— Meninas, acho que vocês têm visita! — mamãe grita, dando espaço para Diogo, Vitório e Joseph entrarem dentro da nossa casa.

São muitas coisas para assimilar num único segundo. Os três com roupas do meu século? E, o mais incrível, e ao mesmo tempo horroroso: os três dentro da minha casa? NO SÉCULO VINTE E UM?!

Escuto uma de minhas irmãs arfarem atrás de mim, mas não olho para saber quem foi, nem quando Ayla fala consigo mesma:

— Não achei que ela estava falando sério na parte do feitiço realizar meu desejo.

O Que Os Contos Não ContamOnde histórias criam vida. Descubra agora