O plano de fuga era mais fácil do que eu imaginava. Enquanto eu me arrumava e Giovanna arrumava uma pequena bolsa para mim, ela foi me contando tudo o que planejara com sua Íris.
Simples; eu direi para uma das freiras que não estou bem e que preciso ficar no quarto, isso bem na hora dos parabéns para Giovanna. Todos do orfanato estarão lá, no refeitório, e a freira com quem eu falarei também, então será fácil ir para a pequena biblioteca, que fica no primeiro andar, e pular a janela.
Depois tenho que correr e sair pelo portãozinho traseiro, que todas as manhãs fica aberto, por algum motivo que esqueci de perguntar à ela.
Atrás do orfanato tem uma floresta, que é enorme o bastante para eu me perder e morrer lá dentro. Giovanna avisou que é só correr perto dos muros, e parar perto da estrada de terra à uns metros do orfanato, o bastante para ninguém me ver.
Eles não sentirão minha falta até estarmos longe o bastante, então é fácil demais. Fácil demais para ser verdade, foi o que eu disse, mas Giovanna, cansada de tentar me acalmar, me ignorou e foi para sua festa.
Agora é comigo.
Desço para a biblioteca, guiada pelas informações de Giovanna, como se conhecesse o lugar e estivesse só dando uma volta pelos corredores. Já dentro da sala, rodeada de livros e poltronas velhas, vou direto para a grande Janela.
A garota de cabelos pretos me disse para não ir de vez, só na hora do parabéns, quando todos estivessem ocupados demais para dar atenção à outra coisa. Mas é tentador demais. Muito tentador.
Ouço um clique vindo da porta e jogo a minha pequena bolsa pela janela, como tinha sido instruída. Um segundo depois uma freira entra, e fica surpresa em me ver.
— Íris, querida, por que está aqui? Não vai ao aniversário de sua amiga?
Giovanna também me falou sobre isso. Somos conhecidas por sermos amigas. Melhores amigas, inseparáveis. Eu entendi de imediato; ser lésbica nesse tempo leva à morte. E de fogueira, ou forca.
— Estava pensando em dar um livro para Giovanna levar consigo. — minto, com as palavras ensaiadas. — Mas então, me lembrei que ela não pode levar nada do orfanato... — dou um sorriso triste, e forçado. — Mas já estou indo, irmã, não se preocupe! Só preciso de um tempinho, de repente fiquei um pouco tonta...
Ela dá um passo na minha direção, preocupada. — Está tudo bem, querida?
— Acho... — olho para o chão, apertando meu estômago com a mão. — Acho que preciso ir para o quarto. Agora.
— Ah! — a freira abre mais a porta, para que eu passe. — Vamos, se apresse!
Assinto e saio o mais rápido possível, tentando não correr desesperadamente. Subo as escadas e entro no quarto. A freira me deixou subir as escadas sozinha, mas ainda é cedo para voltar à biblioteca.
Espero uns dez minutos, e então coloco minha cabeça para fora da porta, olhando o corredor. Vazio. Saio apressada e vou direto para a biblioteca. Demora um batimento do meu coração para a música do parabéns começar, é quando eu tenho que ir, sem olhar para trás.
Pulo a janela com certa dificuldade, por ser um pouco alta para mim, mas consigo atravessar e pegar minha bolsa a tempo. Corro para o portãozinho e tento abrir a fechadura. Emperrada.
Merda!
Muito fácil, muito fácil...
Balanço o portão de um lado para o outro, mas ele não se mexe. A fechadura está enferrujada, por isso não se move um centímetro.
Ofegante, olho em volta, mas não encontro nada que possa me ajudar, nem uma pedra. Meu tempo está acabando. Olho para cima e tenho uma ideia. Uma ideia ruim, principalmente por conta do monte de roupa que não ajuda em nada.
Vou ter que subir no portão e pular, é o único jeito.
Jogo a bolsa e ela pousa do outro lado com um baque surdo. Ótimo. Seguro nos ferros do portão e apoio meus pés na fechadura, dou um impulso e consigo segurar bem em cima. Levanto uma perna e consigo passa-la, mas a saia do vestido fica presa.
Meu coração dá um salto, enquanto tento desenroscar o vestido e puxar minha outra perna, ao mesmo tempo.
Ainda consigo escutar os parabéns ao longe, e parece estar acabando. Perdi um tempo precioso, tomara que eu consiga correr longe o suficiente para que ninguém me persiga.
Desço do portão com cuidado, para não torcer meu tornozelo, sabendo que se isso acontecer está tudo acabado. Mal chego no chão e já pego minha bolsa e saio em disparada.
Além de melhor da turma, e melhor no xadrez, eu sou a melhor atleta da minha escola. Corrida, natação, futebol, basquete e vôlei. Eu praticava todos esses esportes, e agora eles me servem muito bem; corro como um leopardo, ou talvez uma gazela.
Não me importo, só consigo focar em correr, ao lado do muro, e depois seguir a estrada, em uma boa distância, longe o bastante para ninguém me reconhecer, e desistir de me procurar.
Porque, de acordo com Giovanna, eles vão me procurar, e se me acharem, vão me bater, o bastante para eu me arrepender de ter nascido.
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O Que Os Contos Não Contam
FantasyAyla, Eloise e Íris são trigêmeas, mas a única coisa em comum é o amor pelos livros de contos de fadas. Principalmente pelas adaptações. As três vivem em pé de guerra, sempre discordando uma da outra, mas quando Íris acha uma nova adaptação tudo mud...