14. Eloise

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A merda toda caiu em cima de mim uma horas antes do final do meu espediente, bem quando eu perguntava à Anastácia sobre o reino, e os próximos. E ela contou, para meu desespero, que a princesa desse reino é a Branca de Neve.

Não surtei por fora, mas por dentro meus divertidamente estavam quebrando todo meu cérebro.

Como. Isso. É. Possível?

Eu estava lendo a porcaria do livro da Branca de Neve, e do nada eu entrei dentro dele? O que? Fala sério!

Fiquei um tempo calada, digerindo tudo isso, e tentando pensar em como vim parar aqui, o porquê e como vou fazer para voltar. Agora que tenho certeza de onde estou, simplesmente sair do reino e procurar o aeroporto mais próximo não é uma opção. São infinitas possibilidades, e talvez, mas nada certo.

Quando saio do castelo, encontro meu "pai" na carroça, me esperando, todo encolhido por conta do frio. Ele só me vê quando tento subir sozinha, mas perco a força nos braços e acabo escorregando, e caindo de bunda no chão.

O homem, que deve estar na casa dos quarenta, desce mais rápido que eu consigo me levantar, e me ajuda à subir.

— Obrigada. — agradeço, enquanto ele sobe na carroça, rindo da minha queda. — Acho que foi uma péssima ideia, ter matado todas as aulas de educação física...

Ele franse o cenho e para de rir. — O que é aula de educação física? — Ele me encara.

Ah, pronto. Já estava ruim, ficou pior. Merda, merda, merda. Estamos no que? Século XVIII? Acho que as meninas não vão pra escola, ainda. Droga.

— Ah! — solto uma risada nervosa. — foi uma piada que eu escutei lá na cozinha, mas acho que não tem tanta graça, se for parar pra pensar.

Ele me observa com uma expressão desconfiada, mas acaba deixando para lá. Ele pega as rédeas da carroça e a coloca em movimento rapidamente.

Tenho que prestar mais atenção nas coisas que digo. Pensar tudo bem, mas falar já é demais. Tudo no século XVIII, desde o meu comportamento, até meu jeito de falar, está sendo medido. Preciso sobreviver bastante para conseguir voltar, senão eu posso ser jogada na fogueira e acusada de bruxaria.

Voltando para casa, percebo que o garoto-que-deve-ser-meu-irmão, apesar dele ter 14 anos, ainda não teve oportunidade de estudar, mesmo que meninos de baixa renda sejam autorizados. Escutando as conversas, entendo que é muito caro, e como estamos no século XVIII, eu não posso nem pensar em ajudar ele, nem a menina de 12, a aprenderem à ler. E seria um bom passatempo, enquanto arranjo um jeito de voltar para minha casa.

Me pergunto se aconteceu a mesma coisa com as minhas irmãs, já que elas também estavam lendo o livro. Ou talvez só eu que tenha sido amaldiçoada, ou tenha sido um feitiço. Se estou no universo da Branca de Neve, certamente, tem magia e bruxaria. E, claro, a Rainha Má é a bruxa mor.

Consigo pensar em duas opções:

1. Eu recorro à rainha, pedindo que ela faça um feitiço para eu voltar pra casa.

Ou, 2. Ajudo a Branca de Neve à fugir da rainha.

Porque só pode ser isso; Os Contos já foram feitos, antes mesmo d'eu nascer, predestinados e escritos. Disso eu sei, não posso mudar nem uma vírgula. Apesar de ser tentador.

A Branca de Neve não é uma das minhas princesas preferidas; ela tem 14 anos e um cara que nunca viu na vida a beija enquanto ela está praticamente morta. Além de ser nojento é um abuso, e pode chegar à ser estupro, se eu pegar os contos "originais".

E eu, realmente, a acho muito burra de casar com ele, sem ao menos o conhecer melhor.

Passo a noite com isso na cabeça e vou para o trabalho, no dia seguinte, ainda pensando nisso tudo. Não há outra coisa para pensar, nem mesmo no assunto que surgiu essa manhã, sobre eu me casar. No momento pensei, "caramba eu tenho 16 e me casar é a última coisa que eu quero fazer. Se é que tá na minha lista de desejos".

Chegando no castelo, o soldado que me levou no dia anterior, até à cozinha, me leva novamente. Dessa vez eu tento puxar um assunto sobre o tempo.

— É sempre frio por aqui? — pergunto, como uma forma de puxar assunto que deve ser mais velha que ele. — Eu vim de outro reino e era mais ensolarado. Está bem difícil me adaptar, com todos os dias nublado e frio.

— Estamos no inverno. — ele responde, e é tudo o que diz.

Já na cozinha, amasso mais pães ao lado de Anastácia, que não fala muito, como no outro dia. Mas arrisco, mesmo com os olhares que seus tios jogam na nossa direção.

Ontem fui avisada que não era para conversar, pela Sra. Renzo, mas tenho que saber mais sobre esse reino, mais sobre a rainha e, principalmente, mais sobre a Branca de Neve.

— Por que quer saber tanto sobre a Princesa? — Ana pergunta, no meio do dia. — A única coisa que sei, eu já contei. A princesa sofre com uma doença, que dizem ser a tristeza, e ela não sai do quarto; no máximo vai à estufa às vezes. Fora a Rainha que nos deu a notícia, por isso ninguém a vê desde o falecimento do Rei, seu pai, há quatro anos.

— A princesa já tem 14 anos? — mudo o rumo da conversa, arriscando mais uma pergunta.

— Acho que sim. — a menina dá de ombros e suas tranças balançam em suas costas, enquanto ela amassa os pães. — Me lembro de uma vez, que minha mãe comentou sobre eu ser 2 anos mais velha que a princesa.

— Então você tem a minha idade, certo?

Ela assente e me olha pelo canto do olho, um pouco desconfiada.— Tenho 16.

— Eu também tenho. — conto.

Quando estamos quase no fim do dia, ela volta à falar:

— Quantas perguntas hoje... — ela suspira, para dar ênfase. — Você tocou no assunto sobre ser de outro reino, mas não acho que seja motivo suficiente para todas essas perguntas.

— Eu tenho segredos — confesso. —, mas não posso te contar. Não por conta do segredo, mas por ele ser caso de vida ou morte. A minha vida ou morte. Minha vida está em jogo, e preciso saber como viver nesse reino para conseguir sobreviver.

Ana me observa, curiosa, e pergunta:

— O que uma garota de 16 anos tem de tão mortal?

— Talvez eu tenha mentido sobre o reino. Não sobre ter vindo de outro lugar, mas como eu vim de outro lugar, e que lugar é esse. É provável que você não conheça. Ninguém conhece. Esse é o problema.

— Seus pais têm a ver com isso? Minha tia contou sobre sua mãe... Ela parece ser uma mulher normal, e sem segredos sombrios, como você.

— Minha "mãe"... — gesticulo. — Ela não tem nada a ver com meu segredo, ela não sabe de nada. — Termino uma massa e pego a mistura pronta de outra. — Eu quero confiar em alguém, e esse alguém é você. Mas não quero te por em apuros.

— Eu também não tenho certeza, se quero saber sobre seus segredos sombrios. Mesmo estando muito curiosa.

— Eu te provo que sou confiável, e você me prova que é confiável. O que acha?

— E o que eu ganho com isso? — ela rebate.

— Não tenho nada para te oferecer, além da minha amizade. Já você, pode me ajudar à voltar para casa.

— Vou pensar... Não tenho muitos amigos, mas isso não quer dizer que eu esteja desesperada. Se eu resolver te ajudar, que já fique claro; é solidariedade. Eu sei como é estar num lugar que não é seu lar.

— Você não é daqui? — paro de amassar o pão, para perguntar, surpresa.

— Sem mais perguntas por hoje, Eloise.

O Que Os Contos Não ContamOnde histórias criam vida. Descubra agora