Capítulo 56

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Fronteira do Reino das Astúrias — Primavera, Abril, Maio e Junho de 836 d.C.

Juan experimentou novamente o sentimento de família e camaradagem que perdera quando da extinção da Ordem de São Tiago de Compostela.

Não costumava contar sobre sua vida antes de se juntar a cavalaria real, mas alguém descobrira que ele tocava alaúde e certa noite, durante uma ceia em volta de uma fogueira lhe estenderam o instrumento e pediram que ele cantasse algo.

O jovem pegou o instrumento e o dedilhou, não tocava desde que fora expulso de Mérida anos antes, deixara até mesmo o instrumento para trás.

Pensou nas inúmeras canções que conhecia: alegres, libertinas, de amor, nenhuma se encaixava em seu atual estado de espírito. Começou então a tirar alguns acordes e cantou:

Eis que venho com meu fiel ginete de terras ignoradas e de tão longe, mostrar-lhes nesses versos de sangue a tristeza que carrego sempre.

Não reparem, é tudo que tenho e que posso mostrar.

No mais, eis aqui essas rugas que o tempo me presenteou e as minhas lágrimas, dois rios que seguem em direção ao nada.

Passo horas em frente ao espelho, não por vaidade, mas para ver se descubro respostas para algumas envelhecidas perguntas: onde estarão todos que um dia amei? Por que a morte os levou com seu vento tão frio? E os amores que tive? Ainda existirão em alguma dessas pesadas nuvens34?

Seus companheiros ouviram em silêncio, percebendo a amargura em sua voz. Desde que se unira a cavalaria real era conhecido por sua introspeção e fisionomia sisuda. Nunca era visto rindo, no máximo um sorriso frio às vezes aflorava em seus lábios.

Por isso era chamado pelas costas de Cavaleiro da Solidão. Não que Juan se importasse com o epíteto, afinal, era assim que se sentia, um homem solitário.

Após dois meses combatendo na fronteira a cavalaria foi enviada para a Galiza, mensageiros haviam chegado a Oviedo informando que os rebeldes de Mahmud estavam saqueando aldeias cristãs, em vez de atacar o lado árabe.

Dom Henrique comandou seus duzentos cavaleiros e montou seu quartel general em Lugo35, uma cidade murada, próxima à fronteira e distante alguns dias do castelo onde Mahmud se abrigava.

Ordenou, então, que seus esquadrões se espalhassem pela região da fronteira para verificar a real situação. Juan levou seu esquadrão na direção leste, se aproximando do castelo, mas com ordens de não entrar em contato com o líder rebelde.

Finalmente ele chegou a uma aldeia, antes de se aproximar do local percebeu que algo estava errado. Filetes de uma fumaça negra subiam ao céu, aves de rapina circulavam nas alturas. Ao entrar na aldeia, seguido de seus cavaleiros, observou alguns aldeões com olhar assustado dentro de suas choupanas, algumas casas estavam incendiadas, inclusive uma pequena igreja, era delas que a fumaça subia.

Desmontaram e avisaram que eram cristãos. Alguns homens idosos se aproximaram cautelosamente.

— O que aconteceu aqui? – perguntou Juan.

O mais idoso encarou-o com olhar sofrido.

— Árabes vindos do leste, meu senhor, saquearam nossa aldeia, levaram o que quiseram e mataram quem tentou impedir – respondeu.

— Sabe dizer se vieram do castelo de Santa Cristina? – perguntou novamente.

— Quem pode saber? Falavam árabe e usavam cimitarras – respondeu o idoso dando de ombros.

— Vamos pernoitar aqui – ordenou se dirigindo para Alfonso, seu segundo-em-comando – Espalhe batedores pela região e coloque sentinelas, não quero ser surpreendido.

— Sim senhor – respondeu o homem e começou a gritar ordens.

Durante a noite Juan se hospedou em meio aos escombros ainda quentes da igreja destruída. Seu teto já não existia e ele pode observar uma miríade de estrelas brilhando no firmamento.

O local estava silencioso como um sepulcro e ele se aproximou do altar, ou ao menos o que sobrara, um pedaço de madeira queimada.

Ajoelhou-se após sacar sua espada e apoiar-se nela, com a ponta cravada no chão de pedra.

Então rezou, não só pelos moradores que haviam sido assassinados, mas também por seu irmão, morto na mesma e interminável guerra, por sua falecida esposa e enteado que haviam lhe proporcionado um pouco de felicidade por tão breve tempo.

Pensou em seu pai, e rezou para que ele tivesse superado a morte do neto. Desde que saíra de Luco de Ástures, quando contraíra a peste, nunca mais retornara, não recebera mensagens de casa nem tampouco enviara alguma. Seu pai ou padre Paulus não apareceram na corte e Juan estava sempre ocupado combatendo os árabes em escaramuças na extensa fronteira.

Por último rezou por Jamila, onde quer que ela estivesse, pedindo para que ela e seus filhos estivessem bem e em segurança, em algum palácio de Al-Andalus, pois se ela ou Suleymán estivessem envolvidos com as ações de Mahmud, responderiam pelos crimes que este cometera.

Ao terminar, deitou-se em um canto, sem retirar a roupa ou a cota de malhas, conhecia bem demais os muçulmanos, eles gostavam de atacar de surpresa durante a noite.

No dia seguinte voltou para Lugo para informar sobre os ataques, para sua surpresa encontrou Padre Paulus.

A GUERREIRA INDOMÁVELOnde histórias criam vida. Descubra agora