Mérida - Outono, Outubro de 833 d.C.
Caminhando com passos decididos, Jamila e Brunilde passaram pelas sentinelas que as observaram em silêncio. As ruas estavam silenciosas e iluminadas por archotes presos nas paredes das casas e edifícios. Todos acreditavam que a paz em breve seria firmada.
Quando se aproximavam da muralha e do portão ouviram o ruído de lutas e gritos de alarme e de dor, pedidos de socorro e misericórdia.
Um grupo de quinze homens vestidos de preto e com o rosto enegrecido com carvão virou uma esquina vindo na direção delas, parando surpresos ao vê-las.
Brunilde imediatamente tirou o escudo das costas sustentando-o no braço esquerdo e sacou a machadinha de guerra. Jamila a imitou sacando a cimitarra que portava.
— Pelo Emir! – gritaram os homens e avançaram com armas nas mãos.
— Alhahu Akbar! – gritou Jamila respondendo ao desafio.
— Por Thor! – gritou Brunilde correndo ao lado dela.
O ataque temerário das jovens pegou de surpresa os guerreiros que hesitaram por um momento, permitindo que Jamila decepasse a cabeça de um deles com um único golpe de sua cimitarra e Brunilde rachasse o crânio de outro com sua machadinha.
Os demais se recuperaram e avançaram, travando uma luta brutal com as guerreiras. Brunilde e Jamila colocaram-se costas com costas e se defenderam com bravura, cortando membros, rachando cabeças, em meio aos gritos de dor e ao odor nauseabundo de vísceras e dejetos humanos, mas acabaram sendo separadas.
Três soldados cercaram Brunilde, que tinha um corte no braço direito e quatro cercaram Jamila que fora encurralada com as costas contra a parede de uma casa.
Nesse momento um guerreiro apareceu virando a esquina e sem se deter saltou no meio dos adversários da guerreira berbere trespassando o peito de um dos soldados de negro com sua espada, para imediatamente puxar a lâmina e com um golpe circular decepar a cabeça de outro.
Jamila e Brunilde aproveitaram o ataque surpresa que atordoou os guerreiros vestidos de negro e com a ajuda do guerreiro liquidaram os demais.
— Graças a Deus te encontrei! – exclamou surpreso o guerreiro.
— Juan! O que está acontecendo? – perguntou tocando levemente o rosto dele com a ponta dos dedos, enquanto Brunilde vigiava as ruas.
— Fomos traídos! Alguém abriu os portões para as tropas do Emir! – explicou o jovem rapidamente.
— Temos que ir! – grunhiu Brunilde enquanto o som de luta e gritos aumentava e o clarão de alguns incêndios começava a iluminar a noite.
— Vamos avisar papai! – decidiu desesperada e começou a correr de volta para o palácio, seguida da escudeira e Juan.
Dois quarteirões depois eles tiveram que estacar subitamente, inúmeros guerreiros vestidos de negro corriam pelas ruas em direção ao palácio.
Juan arrombou a porta de uma casa e as fez entrar, fechando-a e colocando móveis para impedir que fosse aberta.
Um homem com olhar assustado saiu de outro cômodo carregando uma vela de sebo, ao seu lado uma mulher vestindo uma túnica de algodão e os cabelos cobertos.
— A cidade caiu! – avisou Jamila.
— Precisamos ir para as docas! – disse Brunilde em voz baixa olhando pela fresta da janela de madeira que estava fechada — Há mais soldados de negro correndo pela rua, em breve vão começar a invadir as casas.
— Há outra saída? – perguntou Juan para o homem assustado — Vamos, homem! Responda!
— Pela cozinha! – gaguejou apontando para o cômodo de onde saíra.
Rapidamente atravessaram a pequena casa e saíram em um quintal com algumas galinhas, pularam o muro e se esgueiraram pelas ruas.
— Ali! – apontou a escudeira para uma abertura larga na rua de pedras, protegida por uma grade de metal — É o esgoto! Ele desagua perto da doca!
— Meu pai! – insistiu Jamila — Não posso abandoná-lo!
— Não temos opção! Temos que aguardar, talvez o Emir se contente em prendê-lo! – tentou convencê-la Juan.
— Meus irmãos! – disse ainda indecisa.
— Ibrahim deve ter ido para as docas, Mahmud eu o vi saindo, segundo Ibrahim ele estava indo se encontrar com uma amante, deve estar em segurança – avisou Brunilde usando o cabo do machado para erguer a grade de metal.
A jovem berbere, de repente, se soltou das mãos de Juan e correu pela rua em direção ao palácio, mas ele a alcançou agarrando com força seu antebraço.
— Me solta! Por Alá! – gritou e lutou contra ele socando-o no peito.
— Jamila! – chamou-a segurando-a firme pela cintura — Me escuta, temos que nos esconder, ao menos até amanhã cedo, prometo que tentarei libertar seu pai, mas precisamos de ajuda para isso!
A jovem parou de lutar e abraçou-o pelo pescoço chorando copiosamente enquanto ele a pegava no colo e corria para a entrada do esgoto que Brunilde mantinha aberta, quando ele saltou caindo em um pequeno córrego no subterrâneo escuro e fétido, a escudeira saltou também deixando que a grade caísse de volta ao seu lugar.
— Por aqui! – disse e tomou a dianteira.
— Como você sabe o caminho? – perguntou Juan intrigado ainda carregando Jamila que agora chorava baixinho com o rosto mergulhado em seu peito.
— Meu pai é um homem esperto e precavido – respondeu com um sorriso feroz — Ele conhece todas as rotas de fuga da cidade e me fez decorá-las.
Caminharam pelos corredores escuros, provavelmente construídos na época em que Mérida se chamava "Emerita Augusta" e era uma importante cidade do Império Romano. Algumas vezes tiveram que andar de gatinhas, quando os túneis se estreitavam. Jamila se acalmara o suficiente para andar com as próprias pernas, mas estava imersa em um silêncio absoluto.
A jovem não conseguia parar de pensar no pai e nos irmãos, eles eram sua família, eram tudo que ela possuía na vida, amava-os acima de tudo.
Jamais perdoaria o Emir se ele fizesse algo de mal contra sua família.
Finalmente emergiram em uma abertura onde o esgoto desaguava, perto do pequeno porto. Ainda se esgueirando caminharam até um galpão de madeira na beira do rio, afastado da doca, em meio ao grosso mato que circundava o local.
Brunilde não precisou bater na porta, pois assim que chegaram ela foi aberta, quatro escudeiras paramentadas com suas armas fizeram-nos entrar rapidamente.
Antes de entrar, Jamila olhou para o céu, o dia parecia próximo, uma vez que no horizonte um tom rosado começava lentamente a afastar a escuridão, clarões de incêndio iluminavam vários pontos da cidade, os gritos de guerra chegavam até ela trazidos pelo vento.
Ao entrar, percebeu uma pequena embarcação larga e de baixo calado, sustentada por troncos redondos. As escudeiras e alguns soldados de seu pai estavam no local, todos armados e prontos para o combate, mas eram poucos para um ataque às cegas contra o palácio, que naquela hora deveria estar dominado.
— Jamila! – exclamou Ibrahim correndo até ela — O que está acontecendo?
A jovem fez um gesto apontando para Brunilde, ela não estava em condições de responder nem de pensar em nada, por isso se afastou até um canto do barracão sob o olhar atento de Juan.
— Eu te explico – disse em voz baixa Brunilde puxando Ibrahim para longe dela.
Juan tinha razão, deveria esperar o amanhecer para tomar uma decisão.
Mais uma vez pensou em seu pai e em como ele estaria.
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A GUERREIRA INDOMÁVEL
Romance"O que acontece quando uma jovem guerreira se vê entre o amor e sua convicção?" Século IX d.C., a península ibérica dominada pelos árabes se vê envolta em fortes tensões sociais. Uma embaixada enviada pelo último rei cristão à Mérida tem o objetivo...