06. A Partida -- Parte I

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Antenor Martelli aproveitou que estava sozinho em sua sala, e que não seria incomodado tão cedo, para afrouxar o nó da gravata que usava. Refestelado em sua poltrona, mantinha o telefone colado ao ouvido, enquanto a mão direita segurava uma caneta e rabiscava qualquer coisa em um rascunho.

-- Sah, eu juro que não estou entendendo essa sua reação -- reclamou ele.

As ligações diárias para a sócia costumavam demorar devido à quantidade de assuntos que precisavam discutir, mas especificamente aquela estava extrapolado todos os parâmetros. Antenor informara sobre a proposta feita à Juliette , para garantir que ela pudesse se formar mais cedo.

-- Eu é que não entendo a sua insistência em forçar a Juliette a fazer isso -- argumentou Sarah , do outro lado da linha.

-- Não estou forçando ninguém. Eu dei a idéia e ela concordou.

-- Você é chefe dela, Antenor. Qualquer coisa que sugira vai parecer uma ordem. Ela não vai contrariar para não causar uma má impressão.

-- Está enganada, Sah .

-- Você está no comando há muito tempo, Antenor. Nem deve mais se lembrar de como é ter o emprego nas mãos de outra pessoa.

-- Eu não acho que seja isso, está bem? Mas mesmo que fosse algo desse tipo, a Juliette não tem motivos pra não gostar do acordo. Vai adiantar a vida dela.

-- Se ela estivesse atrasada no curso normal da faculdade, até seria compreensível, mas não é o caso. Ela está fazendo as coisas do modo que tem de fazer. Lotar a agenda dela de aulas, mais o estágio na firma, é de enlouquecer qualquer um!

-- Ela terá total liberdade para encaixar seus horários de acordo com a sua capacidade.

-- Ela não tem discernimento suficiente pra isso, ainda -- rebateu Sarah , enérgica.

-- Você, na idade dela, já estava começando o mestrado. Acha que eu não sei que você fez a mesma coisa? Dois cursos ao mesmo tempo? Um milhão de pessoas já fez isso e não morreu.

-- Esse um milhão de pessoas, dentre as quais eu me incluo, não eram MEUS estagiários.

-- E desde quando ela deixou de ser estagiária do escritório para se tornar SUA estagiária?

Ele pôde ouvir Sarah bufando do outro lado da linha. A advogada claramente estava num péssimo dia, de péssimo humor e com o gênio de sempre.

-- Sah... -- retomou ele, com cuidado. -- Até agora conseguimos entrar em acordo sobre tudo, não é mesmo? Não esperava por essa sua reação. Inclusive por saber que vocês são amigas, eu imaginei que você fosse adorar a sugestão. Então, diga, foi a Juliette quem pediu pra você me fazer mudar de idéia?

Sarah demorou a responder.

-- Foi.

-- Hum. Acho que isso encerra a questão. Mas vou ter uma conversa com ela. Você deve estar certa sobre ela tomar tudo o que eu sugiro como ordem. Não quero que funcione assim entre nós.

-- Antenor, deixe isso pra lá, está bem?

-- Imagine, eu faço questão. A Juliette tem um futuro brilhante conosco e a nossa relação tem de ser a melhor possível.

-- Eu concordo -- disse Sarah . -- Mas não toque nesse assunto com ela, por enquanto. Deixe que eu falo. Apenas comunique que mudou de idéia.

-- Repito: eu faço questão.

-- Antenor...

-- A não ser que isso abra um precedente para uma de nossas colaboradoras descobrir que escondemos coisas um do outro. Ou que mentimos um para o outro... -- arriscou ele.

Sarah bufou de novo.

-- Já entendi. Faça como quiser, Antenor. Mas da primeira vez que eu notar a Pirralha com olheiras, vou esfregar na sua cara que a culpa é sua.

-- Você subestima demais a capacidade dela.

-- Conheço a Juliette melhor que você, Antenor. Vai ser um ano turbulento pra ela. Sem mencionar que o Direito é uma ciência humana, demanda tempo para assimilar certas coisas, para amadurecer o aprendizado.

-- Um tempo que você não quis, na sua época -- retrucou ele.

-- Tem razão. Por isso eu quero que todo mundo se ferre repetindo as minhas escolhas ruins. Isso deve desequilibrar o universo a meu favor, não é mesmo?

Antenor apertou os olhos, engolindo o que tivera vontade de responder imediatamente. Depois de refletir, mudou completamente de assunto:

-- Fiquei radiante de felicidade quando você decidiu tirar férias.

-- É, muitas pessoas ficaram.

-- Mas você não parece estar aproveitando o tempo para esfriar a cabeça -- disse Antenor, com cuidado.

-- Eu funciono melhor trabalhando -- argumentou ela.

-- Bem, você nunca foi muito de conversar. Não deve ter mudado agora.

-- Não, mesmo.

-- Não vou insistir. Outro dia tocamos nesse assunto.

-- Como preferir.

Ele já ia desligando o telefone quando decidiu tentar uma última coisa:

-- Deve ter alguém no mundo com quem você fala. Faça isso, filha.

-- Antenor, eu estou bem, ok?

-- Ok. Até amanhã, Sah.

-- Até.

A advogada desligou o telefone e respirou profundamente, encarando a janela fechada. Antenor era a pessoa mais difícil de enganar que ela já tinha conhecido. Por sorte, quase sempre ele estava do seu lado.

Ela não tinha mentido por nada, realmente acreditava que Juliette seria posta em apuros com aquela medida, mas Antenor tinha razão sobre o seu estado de nervos. Na noite anterior, Sarah saíra com a namorada. O que pretendia ser uma simples ida a um barzinho para quebrar a rotina, tornou-se motivo para mais uma longa briga.

Dessa vez, Pocah implicara com a garçonete do lugar, que segundo ela, desapareceu exatamente no mesmo intervalo que Sarah alegou ter ido ao banheiro.

Como ficara tarde para Pocah voltar para seu alojamento na universidade, Sarah acabou passando a noite no sofá da sala. Suas costas doíam quase tanto quanto seu coração já cansado de ter de dar tantas explicações. E sua mente estava à beira de um colapso por antecipar que quando finalmente tivessem de discutir a volta da advogada ao Brasil de maneira definitiva, a briga seria ainda mais feia.

 E sua mente estava à beira de um colapso por antecipar que quando finalmente tivessem de discutir a volta da advogada ao Brasil de maneira definitiva, a briga seria ainda mais feia

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