A nave central se tornava um local de paz naquela hora do dia. A cacofonia animalesca da humanidade civilizada em pleno movimento pelas ruas apinhadas chegava até ali totalmente abafada, como se distante daquela realidade de atmosfera etérea colorida pelo chapisco multicolorido dos vitrais retratando cenas bíblicas e santos há muito arraigados pelo ciclo natural da vida.
Havia algo mais a pedir? Fernanda nem se lembrava. Há mais de uma hora girava o terço entre as mãos e apenas isso. Apenas pensamentos e lembranças dispersas, o canto afastado na privacidade que o grande espaço proporcionava.
Não obstante ser um ambiente acolhedor, a mulher sentia-se deslocada, pródiga errante, enfim de retorno à procura de esclarecimentos. A temperatura amena parecia um pouco mais fria em seus braços, pequenas correntes de vento balbuciavam, ora perguntando quem seria aquela jamais vista, ora cuspindo descontentamento ao reconhecê-la, ora zombando por, ferida, implorar qualquer alívio.
Sete anos. A visão do grande altar decorado com objetos de ouro e toda a simbologia católica despertava lembranças. Sete anos atrás sua penúltima visita aconteceu após um pedido de sua mãe. Dois meses depois, percorria o mesmo caminho na missa de sétimo dia. Seu pai partiu onze anos antes. Com a morte do pai de Samuel há quatro anos, encerrava-se a experiência de Felipe em ter avós.
Com o desaparecimento de Felipe, encerrava-se a experiência de Fernanda em ter um filho.
Badalando, reverberando em um colossal estrondo, o sino assustou a mulher, vibrou em sua torre marcando cinco horas. Tarde. Talvez para algo além do horário em si. Cada oscilação pendular do enorme objeto metálico derrubou mais um bloquinho do seu pequenino castelo de brinquedo chamado esperança. Sem pais, sem filho, talvez sem marido. Em sua percepção, vinha resistindo mais do que poderia imaginar. Talvez esse esforço resultasse de nada além do medo, pois superar esses problemas iria além da experiência e crescimento pessoal: arrancaria para sempre um pedaço enorme de si mesma, inclusive a maior lembrança lapidada em sua mente.
Valia a pena enterrar sob toneladas de amarguras, consequência de um futuro forjado em um coração ressecado, a lembrança do momento em que viu seu bebê pela primeira vez? E todas as outras lembranças? Sua formatura, o primeiro encontro com Samuel, a viagem para a Suíça...
Era hora de ir embora. Lá fora, o calor irradiava em ondas, anunciando mais um verão tórrido. Ficou em dúvida se deveria rumar para casa de uma vez, quando o cheiro característico de pipoca a deixou incrédula. Se aproximou do carrinho onde trabalhava o velho pipoqueiro sentado em um banquinho de madeira, no pátio da igreja.
— Senhor Batista?
— Oi! Quer uma pipoquinha, moça? Tem pipoca doce e sal... Dona Fernanda?
— Sim. Sou eu mesma!
— Há quanto tempo, minha menina! Me dá um abraço, que saudade!
Muito tempo, realmente. O carrinho de pipoca era outro, o velho homem parecia menor, cansado, com mais rugas e enjoado de tinturas nos cabelos, agora totalmente brancos. Parecia mais frágil também, e com certeza mais lento, se comparado ao ativo e ainda energético senhor de boné azul do passado. Fernanda abraçou o velho amigo, impressionada ao vê-lo trabalhando aos setenta e nove anos de idade. Milton Batista, o velho férreo se recusava a ser vencido pelo tempo.
— Quer saber? Sim, uma pipoquinha seria ótimo! Vou fazer companhia ao senhor, tudo bem?
— Oh, Claro! Colocar o papo em dia, hum?
— Oito anos e meio de notícias para atualizar.
Foi o que fizeram, discorrendo sobre suas vidas durante o grande hiato sem notícias um do outro. Fernanda comia ali mesmo, de pé, enquanto o senhor descansava em seu banquinho, preparando-se para mais uma noite de possível bom faturamento. Quando nada mais de importante havia a ser dito, passaram a conversar sobre assuntos banais. Isso era bom, a mulher percebeu. Distrair-se com as mais simples coisas ajudava a espairecer, e, a recompensa mais gratificante, punha um sorriso no rosto do velho amigo, satisfeito em rever a mulher que conhecera ainda moça.
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Nas Ruínas Antigas
FantasiaAté onde suas escolhas te levam? A contagem regressiva para o fim da existência já começou. Nos últimos movimentos do ponteiro, Felipe, um adolescente aparentemente comum, é transportado para um planeta em outro universo. Nesse mundo de múltiplas fa...