Em fúria, a chuva se aproximava do palácio, sonora, escondida na noite. As janelas golpeavam as paredes, rudes no vaivém do vento. Quando chegou, a torrente encharcou as cortinas, escorreu pelas paredes e formou poças no escuro chão de madeira.
Raamá ainda estava acordada, mesmo que exausta e pouco se importando em reunir forças para caminhar até as janelas. Nenhum movimento considerável fora feito até agora, estava presa às decisões alheias, estagnada na lama do Pântano Sangrento tal qual um animal atolado em areia movediça.
— Quetzalcóatl é um tolo, e o Capitão não vê essa situação como algo pessoal, tudo se resume a negócios para ele, e os pequenos detalhes acabam escapando.
— E ambos poderão nos derrubar com isso. A serpente é orgulhosa demais para se preocupar, mesmo que eu alerte, e o Capitão tem confiança absoluta no exército e na tecnologia, malditos sejam os elfãs. Fane, meu corvo viu a coisa no céu, também viu os feitos do Escolhido.
— Sim… instável, você disse?
— Como um bebê segurando uma lança. Talvez uma tocha, nesse caso.
— Jovem, não obstante com capacidade para feitos gigantescos. Todo o poder do mundo nas palmas daquelas mãos inexperientes.
— Sabemos bem que a consequência pode ser ruim. - Raamá deu um pequeno sorriso.
Fane concordou com um movimento de cabeça, contudo, mirava a taça vazia entre suas mãos, distante nas suas ponderações. Talvez discordasse um pouco.
— Não somos santas, eu dei as armas necessárias e você as usou ao seu modo, ambas sabíamos qual seria o resultado. Mas agora, no fim da estrada, às margens da possibilidade de morrer em decorrência das nossas ações... teria feito diferente?
A pergunta perfurou o peito de Raamá, dolorosa. A bruxa fitou aquele par de olhos inquietos como se acabasse de receber uma repreensão. Podia até mesmo imaginar uma figura paterna na mulher sentada à sua frente, não fosse o contraste dos cabelos soltos com o resto do vestuário. Blusa de manga curta, calças e botas, uma anomalia escandalosa para a tão comum imagem da mulher de traços delicados em glamurosos vestidos que em tudo lembrava a Era Vitoriana, ou nesse caso, o estilo extravagante das ilhas Vonjá ao sudeste do continente, um quarto de mundo de distância. Mais delicada impossível; mais mortal também.
Seu pai e sua mãe ao mesmo tempo, o mais próximo de uma família. Não obstante, algo muito diferente também.
O tamborilar da chuva agora soava irritante.
Fane foi embora, junto à última luz do sol, e sem qualquer resposta. Veio a noite, e Raamá ainda pensava nisso.
Contra a vontade, ficou de pé e se arrastou até a janela mais próxima e a fechou, pisando sobre a poça, molhando seu roupão. Pouco importava. Deitou sobre aquele banco simples onde por tanto tempo observou o terreno desgastado ao seu redor, sentindo o toque frio das gotas em seu rosto, experimentando uma paz conturbada. Estava exatamente como naquele dia fatídico, deitada sob a chuva.
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Lá de cima, conseguia enxergar apenas o mar próximo ao horizonte, todo o resto do mundo era uma grande nuvem branca e fofa, muito fria. Silenciosa e experiente, vagueou pela casa como uma silhueta pouco colorida no início da luz matinal até o móvel velho e pouco trabalhado, e muito leve, o mais importante. Da bocarra luminescente uma lufada de ar frio escapou, e sem qualquer medo da visão ameaçadora, pulou.
O Reino de Áclia se localiza na parte leste do continente, na costa do Mar da Calmaria. Com sete séculos de história, já viu o governo de quatro dinastias, enfrentando períodos de alvoroço entre as transições. A capital Evonita é um local milenar, construído pelos Crolan e por muito tempo largada ao léu, abandonada à sorte de bandidos, animais e deterioração.
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Nas Ruínas Antigas
FantasyAté onde suas escolhas te levam? A contagem regressiva para o fim da existência já começou. Nos últimos movimentos do ponteiro, Felipe, um adolescente aparentemente comum, é transportado para um planeta em outro universo. Nesse mundo de múltiplas fa...