Singelos raios de sol cortando as nuvens douradas no horizonte leste anunciavam o início de um novo dia. Imbatível, o frio perfurava a carne até os ossos e dificultava os movimentos. Mesmo assim, Mary já estava de pé, tremendo, observando com desagrado a água corrente e a alojada em poças e entre o solo. A despeito do calor oferecido pela barraca, uma movimentação a acordou e um pressentimento ruim a fez levantar. Era apenas Felipe perambulando a esmo pelo campo, livre de uma blusa quente. O garoto se ajoelhou e inclinou a cabeça para o chão, e lá permaneceu, a cinquenta metros do acampamento. A arqueira aguardou com expectativa, até vê-lo tombar como que desmaiado.
Nem um instante deveria ser perdido. Mary invadiu a barraca de Calebo, arrastou o ogro antes que esse estivesse completamente desperto, foi insultada por jogá-lo na grama molhada e o ergueu pelo casaco usando apenas uma mão.
— Felipe precisa de ajuda! - Murmurou, sacudindo o pequeno companheiro na esperança de que talvez a ação pusesse compreensão em sua mente.
Encontraram o garoto ajoelhado, tossindo e cuspindo. Hakuja se movia ao redor em um círculo perfeito, exalando nervosismo. Aproximaram-se com cautela, receosos do que encontrariam, e Calebo não conseguiu evitar um silvo de surpresa ao ver a poça escarlate entre os joelhos do garoto, quase meio litro de sangue vermelho escuro e viscoso.
— Mestre, qual é o problema?
— Cada... Urgh! - A resposta se resumiu a uma palavra e um grunhido de dor.
Tremores nervosos se apoderaram do corpo de Calebo, tantos quanto os que seu mestre sofria, e ainda maiores por conta do frio. O lagarto prosseguia em sua caminhada ininterrupta, repetindo que o garoto deveria se acalmar, tudo ficaria bem, bastava que seguisse seu exemplo e mantivesse a concentração sem se deixar afetar. Já era possível notar a formação de uma trilha circular por onde seus pequenos membros o moviam.
— Devemos chamar ajuda, os magos azuis são bons na arte da cura. - O ogro sugeriu.
Mary considerou a sugestão por longos instantes, e moveu a cabeça em negação.
— Péssima ideia, pequeno.
— E como v... O Escolhido precisa de ajuda, vou buscá-la. - Dito isso, virou-se na direção do acampamento e deu o primeiro passo. A mulher o ergueu no ar e se colocou no caminho de seu objetivo.
— Calebo, seja cauteloso! - Ralhou enquanto o devolvia ao chão.- Qualquer mostra de fraqueza já seria suficiente para mandar os angragorianos de volta para casa, essas pessoas são patéticas, pense no que farão quando descobrirem que Felipe vomitou uma poça de sangue.
— Mas ele precisa de ajuda. Consegue ver?! Olhe para ele, arriscar a sorte pode matá-lo!
— E o que os magos poderão fazer? Conseguem as formigas curar um dragão?
— Argh! Desconsideração e falta de empatia, é o que sinto em você! Está ouvindo, Hakuja?! Violeta não diria isso, diria?! Saia da minha frente, está conosco há menos de um dia, não vai me impedir ou me dizer o que fazer.
— Calebo! Fique onde está ou juro que pego você com os dentes e o jogo nesse maldito rio!
A represália de Hakuja feriu algum sentimento do pobre ogro. Calebo olhou para o lagarto, sem acreditar na posição tomada pelo mesmo.
— Mas eu... ele... eu só quero ajudar. Ha... Hakuja?! Se lembra de Parvapo. Quer apostar na possibilidade daquilo acontecer de novo? E se não acontecer? Eu tenho medo de... - Estava desesperado, incapacitado de externar suas sinceras palavras. Seus grandes olhos escuros marejados de lágrimas atestavam o turbilhão em seu interior.
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Nas Ruínas Antigas
FantasíaAté onde suas escolhas te levam? A contagem regressiva para o fim da existência já começou. Nos últimos movimentos do ponteiro, Felipe, um adolescente aparentemente comum, é transportado para um planeta em outro universo. Nesse mundo de múltiplas fa...