Cap. 54 Borboletinha

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— Hora de acordar, nada de moleza! - Uma voz familiar ecoou de lugares distantes nos mares de sua mente.

Foi interrompida no meio de um sonho bom, o campo mais belo e florido já visto pelos olhos humanos, com clima perfeito e aroma suave por toda parte. A voz tomou a forma de uma sombra intrusa em meio às plantas, impossível de focar e muito disforme.

— Raamá, acorda! Já cheguei!

Oh, sim! Lembrou-se de onde estava antes mesmo de abrir os olhos. Quando os abriu, viu a barba desgrenhada e levemente grisalha do seu pai, próximo e inclinado na sua direção, tal qual uma árvore resistindo à ventania. Por mais inacreditável até para ela mesma, conseguiu cochilar em meio ao barulho do início da tarde.

— Chegou mais cedo? - Ainda estava atordoada pelo sono.

— Ha! Cedo?! Já é fim de tarde, menina! Agora sai daí, está na hora da sua mãe tomar banho.

Sempre assim, a menina pensou enquanto cambaleava para fora do quarto. Nenhum cumprimento ou abraço vinha do seu pai, pelo menos desde que sua mãe adoeceu e uma apatia misturada a um humor irônico e irritadiço se apossou dele. A menina também sentiu o cheiro azedo da bebida quando seu pai se aproximou para fazê-la levantar, e poderia nem mesmo se importar com isso, caso não houvesse transformado os goles corriqueiros em verdadeiras bebedeiras há três anos, em uma mudança nem um pouco gradual que o levava ao vômito e às dores de cabeça frequentes quando estava livre do trabalho e das obrigações para com Nila. Às vezes era como se o pai estivesse doente, ele parecia cada vez mais distante.

Com a velha vassoura em mãos, pôs-se a varrer o térreo com a maior diligência possível, suando em instantes. Inferno, aquele verão realmente estava quente além do suportável. Dispensou nada menos que quinze minutos na tarefa, no fim da qual retornou ao cômodo onde se empenhou com particular intensidade: a velha despensa. Devagar, quase em um respeito eclesiástico pela visão que logo teria, Raamá se aproximou e retirou o móvel, o tapete vermelho e as tábuas, lançando um olhar para baixo e admirando uma vez mais a atmosfera mágica de sua câmara secreta. Pegou sua escada de madeira e desceu para a terra fosforescente. Procurou pela vela e pelo baú, e guardou suas novas moedas em meio àquela pequena fortuna tão dificilmente conquistada.

Usando a vela, iluminou a razão pela qual conseguiu todo aquele dinheiro. Após a câmara estava uma nova seção escavada pela própria menina com a ajuda indispensável de seu pai, com o dobro do tamanho e um metro e meio de altura. Saudáveis e delicadas, as amoreiras cresciam naquele pomar improvisado, livres de doenças e da necessidade de luz solar, produzindo sem parar as melhores amoras já vistas em Áclia. Os veios brilhantes  pareciam tão vivos quanto as plantas, seguindo o caminho de suas raízes e iluminando mais intensamente ao redor dos caules.

O pulo do visitante misterioso ergueu uma nuvem de pó. A pequena Raamá estava sem ação, apenas observando com um misto de espanto e curiosidade.

— Desça aqui, criança. Não vou fazer mal a você, nem deixá-la cair no chão. - As mãos se abriram como se o homem aguardasse para pegá-la no ar. Em qualquer outra situação, teria negado e se afastado às pressas até sua mãe, mas uma aura de segurança exalava daquela pessoa e lhe dava a certeza de que não sofreria nenhum mal. Pulou.

— Antes da queda desse mundo, os Crolan viviam espalhados por todo o continente e além, construindo cidades suntuosas como essa um dia foi, antes da derrocada final e a ascensão de outros poderes. O que sobrou disso são ruínas, cacos, destroços. - A face do homem de meia idade assumiu uma expressão de tristeza.- Outrora uma civilização poderosa e mágica além de nossa compreensão, hoje renegada e destruída. Nada além de…- Acenou ao redor.- Pó.

— É bonito. - A menina estava grudada à uma parede e se recusava a sair daquele canto, se sentia acuada pela atmosfera da pequena câmara.

— Todas as magias são. Nenhuma é feia ou má, apenas as pessoas que as usam. E pensar que hoje não temos a escolha de como usar. Veja, olhe como os veios estão fracos.

Nas Ruínas AntigasOnde histórias criam vida. Descubra agora