Cap.58 O filho da máquina

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Provavelmente demoraria muito tempo para se acostumar com a visão do espaço se dobrando. Um observador comum veria pouca coisa além de flashes de luz e nuances de azul e vermelho, os Dax disseram. Mas Felipe via tudo, pela primeira vez plenamente consciente da viagem até aquele lugar, admirando galáxias retorcidas passando ao redor em velocidades absurdas. Ficava longe, nas bordas do universo observável a partir de Vidon, mas chegou em dez segundos. Sair da dobra lhe deu ânsia de vômito, mas se forçou a suportar e seguir em frente. A iluminação era inconfundível, as rachaduras espalhadas pelo ar também. Estavam ao pé da montanha onde vivia o Ermitão.

— Espero que vocês consigam voar, a subida é longa. Isso é entre ele e eu, fiquem atrás de mim. - Felipe flutuou acima do cascalho e foi na direção do topo sem olhar para trás. Estava ficando bom naquilo. Na verdade era muito fácil, bastava erguer a si mesmo usando a energia dourada. As roupas caras e bonitas eram gentilmente abraçadas pela poeira, e então apenas o vento permaneceu. O pináculo possuía mais de mil metros, imponente na paisagem desértica. Enquanto subia, o garoto sentia tudo ao seu redor. Suspirou. Não havia loop temporal, o sol apenas estava eternamente no mesmo ponto abaixo do horizonte, pois o planeta se encontrava travado por forças de maré. Mais uma mentira. Foi até o outro lado, acima da montanha. Quando pisou sobre o promontório mais alto, sentia pena do Ermitão. Aquilo era uma barreira projetada para mantê-lo ali, isolado. Mais uma mentira. Observou a cratera chamuscada, redonda e grande o suficiente para comportar um carro popular. Uma verdade, pelo menos.

Olhou para cima, e os Dax baixavam suavemente, figuras olímpicas descendo do céu em suas armaduras acobreadas. Estendendo as mãos, sentiu exatamente onde estava o pobre exilado. Caminhou até a entrada da caverna de suprimentos e aguardou, as mãos atrás das costas e nove gigantes espalhados na área atrás de si. O ermitão surgiu da parte escura, vestindo uma túnica preta sem mangas, balançando um copo de vidro na mão esquerda. Sua única reação ao ver o garoto foi deixar escapar um grito engasgado, e o copo escorregou entre seus dedos, caindo quase em câmera lenta. Felipe mordeu os lábios, indeciso. Não conseguia sentir raiva daquele homem, vendo sua situação por essa nova faceta. Caminhou até a figura imóvel e amedrontada, segurando gentilmente seu braço.

— Venha comigo, Ermitão. Vamos conversar. 

Levou o homem até o primeiro promontório e sentou-se ao seu lado no banco de pedra. O Ermitão já enfrentava a velhice, seu aspecto cansado apenas reforçava as linhas da idade. Não ousava olhar nos olhos do Escolhido, talvez por medo ou vergonha.

— Quem são eles? - O homem olhava de soslaio na direção dos nove seres.

— Os Dax. São amigos; aliados. Não se preocupe com eles. Sabe… eu aprendi muitas coisas desde nossa última conversa.

— Percebi, está mais poderoso. Mas seu corpo está fraco.

— Sim. - Felipe pegou uma pedra e jogou montanha abaixo.- Quiseram adiantar meu despertar, e junto ao uso do anel que você me deu, eu quase morri sem saber o porquê. Ainda estou morrendo, mas como já disse, aprendi muitas coisas. - O garoto olhou nos olhos do Ermitão.- Agora eu sei quem sou, consigo finalmente responder a sua pergunta. Isso talvez signifique nada para você, entretanto, pode me chamar de Askartrom. Quando você disse que eu deveria tentar ser o herói que todos os universos precisam, não entendi a escala real disso tudo. Agora entendo, e é imensurável. E antigo. E pulsante. E poderoso.

— Garoto, por que está aqui?

De fato, qual era o motivo? Em análise lógica, uma ação desnecessária. Porém, Felipe precisava fazer aquilo.

— Eu acho que… que… vim dizer adeus. Confesso ser estranho pensar dessa forma, mas veja só! Durante todo esse tempo todos consideraram você o ponto mais importante de toda a trama, quando na verdade é um prisioneiro, uma marionete mal utilizada. Não tenho raiva de você, por favor, não pense isso. Eu conheço a sensação das expectativas estarem sobre suas costas e você se ver sem ação, sem opção. Você é uma vítima, uma variável na equação onde eu sou a constante, e sinto muito que tenha passado por tudo isso. Também peço que não sinta raiva de mim, nada disso foi culpa minha. Mudaria tudo se pudesse, porém é impossível.

Nas Ruínas AntigasOnde histórias criam vida. Descubra agora