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No dia seguinte acordei tão destruída como se tivesse sido atropelada por um carroça. Além da dor emocional causada pela conversa com Pá, meu coração parecia rasgar com a distancia entre mim e o fae.

Ele me avisou, mas eu não tinha noção do quanto doeria. Uma semana e meia a mais, já não sabia como ia suportar, talvez ficasse acamada e sem nenhum diagnóstico, exceto a possível descoberta da minha situação pelo pai de Felipe. Aquele homem era ardiloso como uma cobra, seu corpo magro e alto também me lembrava uma. Se fosse um fae sua forma original com toda certeza seria uma serpente.

Uma das poucas coisas boas que a separação de Felipe me trouxe foi nao precisar mais ter esse homem como sogro. Ele faria um inferno na minha vida, já que não acredito nessa religião absurda e não frequento nem frequentaria jamais aquela igreja.

Qualquer que seja o Deus que tortura pessoas que se amam de forma diferente e degola aqueles escolhidos que não possuem opção a não ser ficar presos aos seres que fizeram isso, não o quero. Me recuso a adorar um ser assim.

Aliás, esse homem era uma das pessoas que mais me difamavam nessa vila. Em seus cultos só faltava falar meu nome. Sobre como homens e mulheres não deviam se descuidar até o casamento, porque o mal sempre podia se infiltrar em nossas almas e como as mulheres eram mais suscetíveis a serem contaminadas, os homens deveriam ter maior cuidado em ter relações sérias com uma mulher da vida.

A satisfação dos desejos masculinos não era incentivada, porém aceita. Agora uma mulher, por ser tão fraca contra o mal deveria vigiar muito mais o próprio comportamento.

Para piorar, dizia que os faes se sentiam atraídos por essas pessoas, era muito mais fácil roubar suas almas. Por isso mulheres da vida deveriam ficar em seu lugar e não rondando em meio a pessoas de bem.

Felipe veio me pedir perdão por tudo o que era dito e foi quando tive noção do tamanho do rumor. Ouvia xingamentos, mas tudo piorou quando o sacerdote descobriu nosso caso, deve ter sido nessa época que virei assunto das reuniões.

Nunca vi aquele homem tão furioso, pensei que ia me matar. Ele me arrastou do celeiro pelo braço e me jogou no chão, quase bati a cabeça e fiquei com marcas por semanas. Mas não podia falar nada, já que dali eu podia ouvir Felipe levando tantas chicotadas que perdi a conta.

Acredito que só não me matou porque a lei não permitia. Transar com múltiplas pessoas do sexo oposto era horrível, mas não crime. Então a únicas soluções para nós punir eram agredir seu filho e acabar com minha reputação.

Acho que nós dois tínhamos problemas, depois de tudo em que nos envolvemos, todas as situações terríveis e traumáticas, não conseguíamos nos separar. Talvez fosse por isso que não o afastei de vez.

Precisava levantar para ir trabalhar mas não tinha ânimo. Quando finalmente consegui me vestir e sair do quarto, encontrei uma caneca de chocolate com rum e uma tortinha de cereja em cima da mesa. Dei um sorriso triste, Pá sempre cuidou de mim e se não falou nada é porque queria me manter feliz. Meus próprios pais não queriam que eu soubesse, ele apenas respeitou seus desejos.

Não sabia como me sentir sobre Richie, meu pai biológico foi presente na minha vida até a morte da minha mãe, sempre aceitando que não seria reconhecido, mas fazendo tudo o que pôde. Era difícil pensar que aquele homem jogado nas ruas, gastando quase todo o seu dinheiro em bebida, desmaiado em qualquer lugar e dependendo de favores tinha feito tudo isso.

Além disso meu pai teve outro filho, arrumou uma amante enquanto minha mãe estava doente. Não conseguia acreditar em toda essa situação, eu fui fruto de uma vingança.

Enquanto terminava meu café da manhã, ouvi um barulho de algo sendo estraçalhado e em seguida a voz de John.

Fui até o banheiro e vi minha irmã abraçada ao noivo em meio aos cacos de um espelho.

-Por que isso aconteceu comigo? O que eu fiz?

-Nada, meu amor. Você não fez nada.

-Você vai se arrepender de se casar comigo. Um homem deformado com uma mulher tão linda.

Jhon chorava e eu espiava do canto. A culpa ia acabar me matando.

-Nunca vou me arrepender de me casar com você, para mim você continua perfeito e acima de tudo, eu te amo.

Saí dali, não queria mais espionar a intimidade do casal. A última coisa que vi foi minha irmã beijando delicadamente a bochecha queimada. Era minha culpa.

Quando desci vi minha irmã se despedindo de Pá e Mariane para ir para o colégio. Os olhos de Elise para Mari eram inconfundíveis, ela estava apaixonada.

Suspirei, provavelmente minha irmã teria o coração partido. A outra estava traumatizada demais para entrar em outro relacionamento e a garota que amava morreu enquanto era carregada por ela. Dei um adeus rápido e saí.

No caminho para meu trabalho vi Rosane e Teresa, minhas únicas amigas. Só que quando as olhei, sorri e abri a boca para trocar uma conversa leve, as duas olharam para o chão e andaram mais rápido, Teresa ainda virou com um olhar muito triste e balançou a cabeça em sinal negativo.

Quando parei para pensar percebi que desde o acidente com Pablo e Matias as duas não falavam comigo, estive tão perdida com Riwty que não percebi isso, o que foi bom, atrasei a minha dor por um mês e meio. Quando tentei ir até elas, Rosane puxou Teresa pela mão e disse, meu pai e meu noivo me proibiram de falar com você e dessa vez eu acho que eles estão certos. Não nos procure mais, Ellie.

Corri do meio da praça até a floresta,  segurando ao máximo minhas lágrimas, quando percebi parei onde tinha visto Riwty pela primeira vez, já que ainda existia um círculo de árvores da vida aqui.

-Eu queria tanto que estivesse aqui.

Eu finalmente soltei minhas lágrimas e caí no chão. Alguns galhos incomodaram, mas não podia me importar menos. O que tinha feito com a minha vida?

-Se eu soubesse que estaria com tanta saudade tentaria vir mais rápido ainda.

Quando olhei para trás lá estava ele, alto, com a pele da cor de uma casca de árvore e o cabelo como uma folha de outono, hoje estava com uma túnica e calças brancas e seus olhos verdes me encaravam como se eu fosse a coisa mais precisosa que ele já viu.

Corri até meu fae e o abracei.

AceitoOnde histórias criam vida. Descubra agora