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Saí do quarto ruminando quantas coisas uma pessoa poderia fazer se vivesse por 3 mil anos. Minha vida sempre foi medíocre, nunca tinha passado de Távola, a vila vizinha, que era pouco maior que a nossa e a grande diferença consistia em uma chapelaria. Mesmo assim, essa visita ocorreu há três anos. Pá nos levou para passear pois achou que precisávamos nos distrair após a perda de nossos pais.

Nós três só estávamos vivas graças a ele. Assim que meus pais apresentaram oa primeiros sintomas da gripe que já tinha matado vinte pessoas, ele nos trouxe para a taberna e pagou o médico. Infelizmente, eles não sobreviveram.

Ficamos seis meses morando na casa de Pá, foi quando aliás Ester e John se apaixonaram. Depois insistimos para voltar para nossa casa. Eu estava prestes a terminar a escola e procurar um trabalho e minha irmã já trabalhava com meu sogro.

Estava perdida nesses pensamentos quando Pá apareceu no corredor.

-Aproveitei uma folga da cozinha para falar com você, minha filha.

Eu era a única das três que Pá chamava de filha, Elise ele chamava de neta, apesar da diferença de apenas três anos entre nós e Ester ele chamava pelo nome. Não sei se aquilo a magoava, provavelmente sim.

-Fale, Pá.

-Precisamos conversar sobre os preparativos do casamento.

-Tudo o que minha irmã decidir por mim está bom.

-Não, o casamento é das duas e eu estava falando do enxoval.

-Pá, não é necessário.

-Olhe, minha filha_disse meu sogro segurando meu braço_eu não tenho esperanças de que você use as hm, peças com Pablo, mas além de precisarmos manter as aparências, você também poderá usá-las com quem quiser.

Corei.

-Além do mais, minha filha, vou comprar roupas novas para você.

-Pá...

-Não, nem tente. Vou mimar você um pouco.

Ele me puxou para um abraço e eu me senti feliz ali, uma família que eu escolhi, ou que ele me escolheu.

-Tudo bem, Pá.

Descemos e eu fui para a cozinha com ele. Desde que John decidira virar fazendeiro houve um desfalque na equipe de Pá. Antes, John ficava no bar, Ester servia as mesas e Pablo ajudava na cozinha. Agora Pá precisava cuidar da cozinha sozinho, era muito para um senhor de 60 anos dar conta.

-Pá.

-Fale, filha.

Enquanto ele montava um prato de comida para mim, batata, carne de panela e purê de abóbora, eu estava sentada em um caixote arrancando outra ponta dupla.

-As coisas estão bem difíceis para você desde que John saiu, não é?

-Sim, vão ficar ainda piores porque sua irmã me disse ontem que depois que se casar com meu filho vai ficar só ajudando na fazenda.

Fiquei surpresa com aquilo, não imaginara que aquilo ia acontecer, por mais óbvio que fosse.

-Então, mais um motivo para você gostar da ideia que vou te propor.

-Fale.

-Mariane, a moça que está se recuperando, não vai conseguir emprego em lugar nenhum, o senhor sabe. Ela poderia ficar como ajudante de cozinha.

-Sim, é uma ótima ideia. Mesmo assim ainda vou precisar contratar outra pessoa. Se o neto da Vovó ficasse, você poderia vir trabalhar aqui.

-Ele só veio visitar, aliás, Vovó vai embora da vila no ano que vem.

-Não acredito, ela não me contou nada.

Achei aquele comentário estranho, mas não seria rude perguntando o porque de ela precisar contar aquilo para ele.

Pá me entregou o prato e uma caneca de cerveja. Comi preguiçosamente quando senti Bolinho roçar na minha perna.

-Miau
(Eu estou com fome, você não vai me dar um pedaço de carne não?)

-Pá, você poderia dar um pedaço de carne para o Bolinho?

-Claro, vou ver se acho algum leite também.

Bolinho ronronou e então levantou a pata traseira e começou a se lamber. Pá deixou dois pratos para o gato, que instantaneamente parou a limpeza para comer.

Como estava atoa e Pá com muitas coisas para fazer, resolvi dar uma ajuda com os pratos.

-Filha, vou desfiar a carne e colocar com o purê, você leva para a Mariane, né?

-Isso mesmo. Assim que der uma esfriada eu levo para ela.

Pá continuava montando os pratos e cozinhando conforme vinham os pedidos enquanto eu lavava a louça. Em uma taberna, o ideal seria que os pratos não fossem de vidro, porém madeira era muito cara para se gastar com isso. Por outro lado, Matias dava várias peças de madeira para Pá e para mim, talvez uma compensação pelo inconveniente. Quando isso começou, minha irmã levou isso como prova de que eu era amante dele e além da grande discussão, tentou me fazer recusar o presente. Eu disse para ela que ia usar a madeira de qualquer jeito, se ela quisesse comprar para usar sozinha, seria problema dela. Um mês se passou sem que ela usasse a minha madeira, que quando sobrava eu dava para as famílias mais pobres da vila. Ester deve ter achado que as despesas ficaram muito altas porque ela começou a usar o que eu ganhava, mas não houve nem um pedido de desculpas.

-Sogro, vou dar uma parada nas mesas para almoçar, o Pablo vai segurar por meia hora.

-Tudo bem, Ester.

-Oi, Ellie.

-Oi, Ester.

Ela me olhava intensamente e eu não queria uma discussão na frente de Pá, então resolvi levar a comida de Mariane. Sequei as mãos na saia, deixando duas manchas escuras no tecido marrom, peguei um copo de água para a moça e o prato de comida.  Quando estava no terceiro degrau minha irmã me chamou.

-Ellie. Eu, eu só queria dizer que estou muito orgulhosa pelo que fez pela transviada.

-Mariane.

-O quê?

-O nome dela é Mariane.

Pela primeira vez, aquela palavra, transviado, me incomodou. Era apenas uma característica da pessoa, não tudo o que ela era.

-Ah, entendi.

-Ester._Não consegui me impedir de falar._Você me renegaria?

Minha irmã arregalou os já grandes olhos azuis e ficou um pouvo mais pálida.

-Nunca. Eu não te reneguei até hoje, por que faria isso agora?

Eu assenti com a cabeça, aquelas palavras não me consolaram muito porque demonstravam o desgosto que ela sentia por mim.

-Eu também queria pedir desculpas por ter dito que você me dá nojo, isso não é verdade.

Dessa vez eu arregalei os olhos, já fazia um ano que não ouvia um pedido de desculpas da minha irmã, mas quando fui responder ela já estava indo embora.

AceitoOnde histórias criam vida. Descubra agora