Capítulo VIII: Uma madrugada para conversar.

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Quando finalmente a noite chegou, senti-me mais alerta. Esther havia arrumado cobertores para todos e deitamos no lado oposto das portas, mantendo-nos longe da friagem da noite. Gê dormia pesado ao meu lado. Observei-o, invejando tal momento.

Queria confiar o suficiente para conseguir dormir assim, pensei, lamentando-me.

- Você é estranha. - comentou alguém.

Levantei o olhar e deparei com Peter me encarando. Agora, ele estava sentado e sua postura demostrava mais calma e serenidade. Avaliei aquilo como algo bom.
- Eu sei. - concordei, respirando devagar.
- Pessoas normais se ofenderiam com isso. - retrucou ele.
- Passei tanto tempo sendo observada como um experimento que não me impressiono mais ser julgada de tal modo.
- Desculpe. Foi rude da minha parte falar isso.
- Eu não esperava uma palavra doce da sua parte.
- O que quer dizer com isso?
- Que desde o momento que nos vimos, a única coisa que fez foi julgar, criticar, reclamar.
- Está incomodada com isso? Simples. Vá embora.
- Por que tem que ser assim? Só faz que eu acredite nas palavras dos doutores.

Vi seu rosto ficar sem expressão e decidi que por hoje, não queria mais conversar. Abracei meus joelhos e deixei minha respiração morna chocar contra o tecido da calça.
- O que eles diziam? - perguntou Peter, depois de alguns minutos.
- Diziam que os civis eram perigosos; que se descobrissem sobre nós, seriamos mal tratados, julgados e condenados como aberrações. Por isso estávamos ali. Só queriam nos proteger. - murmurei. - Agora, tudo parece tão confuso que um minuto eu acredito neles, outrora fico indignada por ter me negligenciado tal direito: nunca fui livre.
-Isso parece ruim. - confessou ele, olhando para os próprios tênis.
- Você se acostuma. - confirmei.
- E como era lá? Digo, ter uma rotina dessa? - perguntou ele.

Levantei a cabeça e sorri.
- Para quem não acreditava na gente, você está bem interessado no assunto. - comentei.

Peter fechou a cara e disse:
- Só estava tentando ter uma conversa pacífica. Depois não me culpe por ser arrogante.

Soltei uma risada e fechei os olhos, tentando lembrar.
- Tudo começava a funcionar cedo. Às nove da manhã, nossos cafés-da-manhã eram deixados na frente da nossa porta. Logo depois, seguíamos para uma sala com um professor, onde passávamos toda a manhã estudando. Almoçava em uma sala com o Gê e eu acabava tirando algumas dúvidas com ele. Depois, eu seguia para uma sala onde tinha uma série de exercícios estabelecida para cada dia. As segundas, quartas e sextas, fazia artes marciais. As terças, yoga. Quintas eram reservadas para meditação e esportes mais calmos, como natação ou boxe. Aos finais de semana, testava algumas armas que os doutores criavam. Sabe, aquelas que pessoas comuns não poderiam testar. No final da tarde, ia direto para a esteira. Enquanto corria, exames de alta precisão eram feitos. Após algumas horas correndo, meus exercícios se encerravam. Com o passar do tempo e ajuda do Gê, aprendi a ler os exames e me autoavaliar. Por último, jantava e ir para minha cela, descansar. - contei.
- Uau! Isso é ...- começou ele.
- Muito? Talvez. Como disse, com o passar do tempo, você se acostuma. - completei.
- E qual sua ligação com ele? - perguntou Peter, gesticulando a cabeça na direção de Gê.
- Ele foi levando para a cela ao lado com quatro anos. Desde então, somos amigos. Ele é a única pessoa que tinha para conversar. Os doutores mal mantem um contato visual conosco, imagina uma conversa. Raramente, quando queriam algo de nós, eles pediam e assim conseguíamos trocar algumas palavras. Queria poder dizer que minha amizade com o Gê se fortaleceu devido as aventuras que tivemos ao longo dos anos, assim como li em livros. Todavia isso seria mentira. Nossa amizade se fortaleceu pela convivência. - expliquei, levantando a cabeça.

Peter apenas assentiu. De certo modo, senti-me na obrigação de fazer a conversa continuar. Se tivéssemos uma boa comunicação, poderíamos evitar futuros problemas entre nós e focar em nossos objetivos. No meio da atual situação conflituosa, eu poderia apaziguar as intrigas presentes. Contudo, para isso acontecer, ambos os lados teriam que se conhecer. O tempo todo, Esther pareceu disposta a escutar, procurando entender. Courtney, por ser uma criança, talvez nem compreenda direito. Talvez entendesse bem a situação, mas se mostra indiferente.

- E você? Como conheceu elas? - perguntei, referindo-me a Esther e Courtney.
- Conheci Esther assim que entrei para essa vida. Morei até meus quinze anos com minha família, mas me sentia tão infeliz ali. Era diferente. Eu conseguia o mundo de outra forma e reagia da melhor maneira para mim, porém não era a maneira correta. Quando acidentalmente, machuquei meu irmão, todos em casa passaram a me olhar estranho, como uma aberração. Eu via o medo no olhar dele; raiva que meu pai sentia e a tristeza profunda no olhar da minha mãe. Foi naquela noite que decidi partir. Meu maior erro foi achar que seria fácil essa vida na rua. Pensei que seria um lobo solitário, que seria simples apenas vagar pelas vielas da cidade. Decidi recomeçar. Mudei de cidade e como vocês dois, achei que New York seria um ótimo lugar. No meio de tantas almas desconectadas, perambulando por suas ruas longas e sem vidas, ninguém se importaria com mais uma alma. Nunca pensei que passaria fome, frio; que, por ter esse gênero forte, apagaria com agressões físicas. Após alguns dias, largado em um beco qualquer, Esther passou por mim e algo chamou a atenção. Até hoje, não sei se trata de algo envolvendo quem somos ou o que somos. Ás vezes, duvido até da minha humanidade... - confessou ele. Em seu olhar, eu via uma mistura em constante movimento, variando entre melancolia e duvida.

Neguei com a cabeça, contrariando.
- Não duvide. Passei quinze anos sendo julgada assim, como um experimento. Jamais fui tratada como humana. Sabiam que tinham que me alimentar, tratar as enfermidades, caso houvesse e distrair-me para evitar mal maior. Tenho certeza que jamais passou nas mentes dos doutores que todo aquele momento, eles estavam estudando um humano, uma criança. Agora que estou aqui fora, posso avaliar os dois lados, já estive entre eles. Você é uma pessoa difícil de lidar, com gênio complicado e sem se importar muito com o que as pessoas pensam. Porém, vai por mim, isso é tão normal quanto respirar. O fato de termos alguns dons apenas significa que somos especiais e não ETs. Não sei como isso é selecionada, por Deus com D maiúsculo, por deuses ou pelo destino pregando mais uma de suas peculiaridades na humanidade, mas não é algo ruim. - argumentei.

Ele sorriu e concordou.
- Se você está dizendo, quem sou eu para contradizer?! - brincou ele.
- Exatamente. - concordei, sorrindo.
- Entendido, Projeto Touro. - continuou ele.
- E também não me chame assim ou da próxima vez, irei te jogar em algo mais sólido. - ameacei-o.
- Olha só. Está pondo as garrinhas para fora ou seria cascos? Chifres?- questionou ele, aparentemente confuso. - Não sei fazer a versão tourina disso.
-Também não sei como fica. Vamos deixar isso quieto. - propus, rindo.
- Acho melhor. - aceitou ele.
- Sabe o que acho? - perguntou Esther de olhos fechados. - Que deveriam calar a boca e dormirem.

Como se isso fosse sua palavra final, ela virou-se para outro lado e voltou a dormir. Rimos o mais baixo possível e continuamos a conversar. No final, Peter me contou que Esther, mesmo sendo mais nova que ele, acolheu-o e ensinou as regras básicas para se viver na rua. Logo depois, veio a Courtney. Ninguém sabe a história dela, já que não contou para ninguém. Peter afirmou ser algo traumatizador para ela e que preferiam não mexer no assunto. A única coisa que sabem é que a encontraram debaixo de uma ponte e que decidiram cuidar da menina. Apreciei tal ato e questionei-me sobre quantas pessoas fariam semelhante. Não sabemos sobre algumas realidades até estarmos envolvido nelas.

Senti o sono pesar nos olhos de Peter e sugeri que seguíssemos o que Esther afirmou. Não tinha como saber o que aconteceria nas futuras horas, então a melhor opção era descansar fisicamente e psicologicamente. Bem que podia afirmar que mal dormir, que o sono me abandonará mais uma vez; porém assim que me arrumei no cobertor, o tão esperado sono mostrou-se presente em mim e entreguei-me, dando adeus ao cansaço e agitação daquele dia.

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