Capítulo XIX: Alérgica a parentes

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Eu não conseguia decifrar o que realmente sentia naquele momento. Era paz? Calmaria antes de uma tempestade? O vácuo do universo? Eu sentia meu corpo em total repouso. Tudo parecia dormente. Comecei aos poucos, mexendo apenas alguns dedos da mão. Percebi que funcionaram corretamente. Então, com calma, comecei a abrir os olhos. Notei o teto branco e a claridade que entrava no ambiente. Com os cotovelos apoiados no colchão, levantei e sentei. Meus amigos logo se aproximaram.

- Como você está? - perguntou Esther.
- Bem. - respondi, sentindo meus olhos um pouco inchados.
- Você dormiu um bom tempo. Ficamos com medo de que não acordasse...- comentou Peter.

George se sentou ao meu lado e suspirou.
- Eu falei para eles não se preocuparem tanto. Afinal, isso já tinha acontecido antes. - confessou ele.
- Hum. - concordei, com aceno de cabeça. - Por quanto tempo eu dormi?
- Dezoito horas. - respondeu Leon, se aproximando com sua cadeira.
- Um bom tempo. - murmurei.
- No Setor H, você dormiu por 23 horas depois daqueles testes em seguida. Foi ai que descobri que cada vez que usamos nossas habilidades, precisamos de uma certa quantidade de tempo para se recuperar. A cada dez minutos que estamos " ativos", precisamos de uma hora para descansar, dormindo. Demoramos em torno de duas horas e meia na última viagem e levando em conta que você ativou seu modo "tourino" por quinze minutos e ele gasta o dobro de energia, faz sentido o total de horas descansadas. - falou Gê.
- Ainda bem que você acordou! - disse Sam, abraçando-me.

Assenti com a cabeça, sorrindo. Então, olhei para a minha mão e vi um curativo limpo no lugar que eu tinha sido ferida. Eu tinha certeza que aquilo tinha sido obra da Esther. Ao meu lado, Gê se remexeu e deixou a cabeça cai de lado. Os outros se afastaram e cutuquei a costela dele.

- O que foi? - perguntei.
-Eu estava pensando...- falou ele.
- Isso nunca é uma boa coisa. - comentei, brincando.

Porém, meu amigo não estava para brincadeiras, pois nem um sorriso deu. Desfiz meu sorriso e voltei a ficar séria.
- Fala. - disse.
- Não estou gostando das brigas que anda se metendo. Isso não é saudável, nem natural. - comentou ele.
- Eu não tenho muitas escolhas. A A-51 poderia ter seus defeitos, mas eu não via tanta injustiça como vejo no mundo. As pessoas machucam as outras por coisas banais. Dinheiro, orgulho, ignorância ou por diversão. Tudo parece ser um bom motivo para machucar o próximo. Eu não consigo me controlar vendo tais coisas. Parece errado eu apenas ficar parada, sem fazer nada, enquanto os demais se ferem. - argumentei.
- Eu sei. Não estou pedindo para que perca seu senso de justiça, mas temos limites, To. Só estou preocupado. Não quero que se machuque mais. Quero que antes de agir com os punhos, use o cérebro. Avalie a situação e se não poder ajudar sozinha, chame por nós. Agora, somos um grupo e temos que pensar como um. - exclamou Gê.
- Tudo bem. Você tem razão. - e joguei meu braço. - Obrigada por se preocupar comigo.
- Somos uma dupla, não somos? - perguntou ele.
- Sempre. - confirmei.
- E agora, somos nove. - confessou ele.
- Nove? - perguntei. Pelas minhas contas, eramos oito e era muito estranho o Gê errar alguma coisa.

Ele sorri e olhou para frente. Segui seu olhar e vi uma pessoa a mais, sentada na mesa. Era a garota que eu tinha ajudado noite passada. Agora, com as luzes do quarto, eu podia vê-la melhor. Ela tinha o rosto fino e moreno. Seus olhos eram verdes e seus cabelos eram castanho-claro, na altura do seu ombro. Suas roupas estavam limpas e ela me olhava, curiosa.

- Não sabemos como, mas você conseguiu salvar nosso próximo signo: Virgem. Ela acabou nos contando que vivia na rua e que tinha uma dívida com você; que tirou ela de uma confusão bem grande. Então, notamos a tatuagem no braço dela e percebemos que se tratava de mais uma criança como nós. - contou Esther, colocando um prato de comida na minha frente. Nele, tinha um hambúrguer e batatas fritas.
- Explicamos o que estávamos fazendo e oferecemos a ela um lugar no grupo. Ela aceitou. Parecia que realmente precisava de ajuda. - acrescentou Gê.

Vi a garota se aproximar e sorrir.
- Obrigada por tudo. - falou ela.
- Aquilo não foi nada. Meu passatempo favorito é salvar pessoas. - comentei, rindo.
- Sério? - perguntou ela.
- Na verdade, não. Gosto de correr. E, bem vinda ao grupo. Chamo-me Tory, de Touro. - apresentei-me.
- Violet, de Virgem. - disse ela.
- Aposto que todos já fizeram as devidas apresentações. - afirmei.
- Fizeram. E a propósito, vocês comem todas as refeições do dia? - questionou ela.
- Tem vez que até conseguimos comer sobremesa, quando o Sam não descobre e a devora sozinho. - confessei.
- Amo doces! - gritou ele, do outro lado do quarto.
- Certo. Vou deixar você comer.- despediu-se Violet e começou a se afastar.

Então olhei para o meu prato e sorri. Seria a primeira vez que eu comeria um famoso hambúrguer. Segurei ele com as duas mãos e me preparei para dar a primeira mordida. O que aconteceu em seguida foi estranho e completamente inesperado. A carne se desmanchou na minha boca e ficou amarga. Senti aquele gosto horrível na boca e forcei tudo a descer para o meu estômago. Caiu como uma bomba. Larguei o lanche no prato e olhei para Esther.
- Do que esse hambúrguer é feito? - perguntei.
- Do que mais seria? De carne bovina. - respondeu-me ela.

Nessa hora, minha espinha gelou e eu mal sabia de que lado batia meu coração. Não tive tempo de dizer nada, antes de correr em direção ao banheiro e vomitar tudo o que comi. Não demorou muito até Esther está ao meu lado.

- O que houve? - perguntou ela.

Eu queria responder, mas meu corpo insistia em jogar para fora tudo. Para a minha sorte, Gê agiu rápido. Pegou uma toalha e colocou na minha boca antes que eu forçasse mais para vomitar. Com seu outro braço, puxou-me para longe do vaso sanitário. Eu sentia minha respiração acelerada, como se o ar do mundo fosse pouco para os meus pulmões. Com cuidado, ele me conduziu para fora do banheiro e me colocou sentada no sofá.

- Está melhor? - perguntou ele, tirando a toalha da minha boca.

Apenas assenti.
- O que foi isso? - interrogou Esther, claramente assustada.
- A Tory já estava vomitando o suco gástrico. Ela é meio que alérgica a carnes que possuem parentesco, como os bois. Na A-51, os doutores conseguiram fazer uma dieta para ela que não envolve nada de carne bovina. Eles seguiram a lógica de não dar carne de boi a uma tourina. É uma pequena restrição que a Tory tem. - explicou Gê.

Esther se agachou na minha frente e disse:
- Desculpe. Eu não sabia.
- Tudo bem. Acontece. - afirmei.

Realmente, não era culpa dela e eu não estava magoada por causa disso, mas percebi que ela tinha ficado ressentida com o ocorrido. Eu poderia ir e falar com ela, porém decidi que dar um tempo para as coisas se ajeitarem sozinhas. Logo o sol se pôs e estávamos todos reunidos novamente.

- Então, o próximo destino? - perguntou Peter.
- Todos fechem os olhos e veremos. - orientei, fechando os meus também.

Não demorou nada para as imagens começarem a surgir. Era um lugar muito iluminado e incrivelmente barulhento. Pessoas bem vestidas entravam e saiam o tempo todo. Eu sabia que lugar era aquele. Logo, a visão mudou e pude dar uma olhada em toda a cidade. Meu coração gelou. Como se fosse um pesadelo, obriguei meus olhos a se abrirem. Quando estava totalmente desperta, vi todos me olharem com​ expectativas.

Abaixei a cabeça e disse:
- Vamos para algum lugar perto dos cassinos, em Las Vegas.

Vi o espanto de Gê, o mesmo que eu sentia. Porém não tínhamos escolha. Uma nova pessoa precisava de nossa ajuda. Esther e Peter nos olharam, sabendo que logo entraríamos em território perigoso, na casa do inimigo. Já as crianças pareceram gostar da ideia. Eu particularmente, gostaria de continuar em Paris, longe do perigo.

Por fim, decidimos pedir o jantar e passar nossa última noite no território francês. Amanhã, voltaríamos para a América.

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