"Ouvia:
Que não podia Odiar
E nem temer
Porque tu eras eu
E como seria odiar a mim mesma
E a mim mesma temer".
- Hilda HilstAmelia
-- Continue andando.
Tentei equilibrar em meus pés ao mesmo tempo em que fingia ignorar a ponta da faca que pressionava minhas costelas. O suor escorria frio pela minha espinha, e meu coração batia cada vez mais forte, o pânico ameaçando me dominar.
Respire. Apenas respire.
Marco Aurélio abriu uma porta e me lançou para dentro. Aquela era a sala do trono, percebi. A sala que não foi afetada pela fumaça, e que agora servia de abrigo para alguns dos convidados. Eles se encolheram contra as paredes, os móveis, e vi uma mulher se esconder atrás de um dos estandartes. O rei não fizera esforço algum para salvar as pessoas do ataque, e entendi o seu propósito. Ele estava me procurando. Queria sua vingança.
Eu virei, e um tapa fortíssimo atingiu a lateral do meu rosto, o impacto me lançando no chão. Fiquei momentaneamente cega e puxei o ar, tentando respirar. Me arrastei para longe dele, o corpo pesado e dificultando os movimentos. Marco Aurélio riu com escárnio, e bastou três passos para que me alcançasse novamente. A bota polida se chocou contra as minhas costelas.
-- Sua vadiazinha!
Se tivesse ar, teria gritado. O rei me chutou novamente, e me encolhi, chorando, querendo aliviar a dor que queimava meus nervos.
-- Eu sabia que você estava planejando alguma coisa, mas devo dizer que foi ousada. Uma bela entrada triunfal de seus homens, devo dizer.
Ele agarrou meus cabelos e puxou, me arrastando até que minhas costas batessem contra as escadas que levam ao altar do trono. Gritei.
-- Onde está Velásquez? Sei que ele está aqui. -- Ele se abaixou, se aproximando do meu rosto. As minhas mãos tentavam se livrar do agarre em meu cabelo, sem sucesso. O rei puxou mais os fios para arquear minha garganta. Grunhi, encarando-o com fúria mesmo quando colocou a lâmina contra a base da minha garganta. -- Não irei matá-la ainda. Quero que o general esteja presente quando eu ceifar a vida da sua princesinha.
O sorriso que abriu para mim foi o de um lobo no auge da caça. Cuspi em seu rosto, esquecendo todo o respeito diante da situação em que estava. Esse homem tentou destruir o meu país. Tentou me destruir. Eu iria matá-lo.
O rei rosnou e me levantou novamente, lançando-me contra a parede atrás do trono. Minha cabeça se chocou com força. A dor se multiplicou, e lamentei em agonia. Uma mão se apoiou ao lado da cabeça e a outra se fechou no meu pescoço, começando a apertar.
-- Você se esquece de que é fraca, Amélia. Fraca e mortal. Já devia estar morta, mas a sua teimosia a manteve viva. Agora, é a mesma teimosia que irá matá-la.
O ar não entrava. Consegui sentir o rosto ficar vermelho, a cabeça latejando tanto quanto o som de tambores. Minhas mãos se fecharam sobre a sua e o arranhei, mas as luvas suavizaram qualquer efeito. Estava prestes a me render à inconsciencia quando, ao longe, uma voz que reconheci levemente chamou a atenção do rei.
-- Ora ora, principezinho. -- Marco Aurélio me tirou da parede com a facilidade de quem move uma boneca, me colocando à frente do seu corpo e voltando a faca para a base da minha garganta. -- Veio resgatar sua princesa?
Fiquei alerta e minha visão voltou o suficiente para ver Kota do outro lado do salão, apontando uma arma em nossa direção.
-- Algo assim. Solte-a.
Retesei o corpo quando o rei enfiou o rosto em meu cabelo e inalou audivelmente. Kota engoliu em seco, o dedo tremeu no gatilho.
Por que ele voltou? Por que não fugiu com Eleonora? Por que não estava em segurança?
-- Eu acho que não. Missão suicida, garoto. Se eu fosse você iria embora, antes que meus guardas cheguem e ponham um ponto final em sua vida também.
Kota olhou de relance para mim, uma emoção desconhecida brilhou em seus olhos, então ele abriu um sorriso para o rei.
-- Eu acho que não -- ele repetiu, zombando. -- Não vou embora, e seus homens demorarão tempo suficiente para chegar. Mas ele está aqui.
Velásquez entrou na sala do trono com uma postura altiva. O queixo erguido em posição de superioridade, a farda militar com uns respingos de sangue e uma máscara de gás pendendo do cinto. Não estava armado. E nem precisaria estar, percebi, pelos homens extremamente bem equipados que surgiram logo atrás.
-- Saudações, velho amigo. Vejo que não cheguei atrasado para a nossa reunião.
O rei rosnou ao meu lado, e o som foi quase gutural.
-- Declan Velásquez -- sibilou. -- Acho que o meu grande sonho de colocar uma bala em sua cabeça será finalmente realizado.
-- Creio que estejamos compartilhando o mesmo sonho, então. -- Ele trincou os dentes. -- Agora deixe de ser covarde e não se escoda atrás do corpo de uma garota inocente.
-- Ela é tudo, menos inocente -- rebateu, pressionando mais a faca contra a minha garganta. Eu não ousava respirar. -- Merece morrer.
O general estreitou os olhos.
-- Tem razão, ela merece. -- Kota arregalou os olhos e deu um passo à frente. Declan o impediu, impelindo-o de volta para o meio dos soldados. -- Mas isso é um assunto meu para resolver. Agora você... Também se tornou um problema. Invadiu meu país e provocou uma guerra Civil. -- Franziu o cenho. -- Por quê?
-- Se você quer a mina de ouro, tem que começar a cavar. Rotas de comércio. Hegemonia na exploração de combustíveis... -- O rei trincou os dentes -- Um filho perdido. Adam enlouqueceu por Amélia. Ele não focava no próprio país, apenas na princesinha aqui. E você... Você estava incentivando isso, dando sinais de um possivel relacionamento. Vocês dois manipularam meu filho e o mataram.
-- Você o matou! -- Consegui dizer.
Ele pressionou mais a faca. Senti um filete de sangue escorrer pelo meu colo em direção ao decote do vestido.
-- Quieta!
-- Ela está certa, Marco -- murmurou Velásquez. -- Você tentou matar a princesa da Espanha, mas não sabia que seu filho estava com ela. E ele morreu tentando salvá-la. Está morto por sua causa. E outros milhares também estão diante da sua ganância. Você fez uma conta muito grande, e agora estou aqui para cobrar.
-- Você não está em posição de fazer exigências, Velásquez. Está no meu território, no meu elemento.
Velásquez sorriu com frieza.
-- Ah, mas temos uma reviravolta interessante! Seus generais estão mortos, assim como seus conselheiros. O sangue deles agora pinta seu adorável chão. Ninguém virá por você.
O corpo do rei ficou rígido atrás de mim, e tive vontade de sorrir também.
-- Não vou me render. Portugal nunca abaixará a cabeça. -- O braço enrolado em minha cintura se fechou mais, e os músculos sob minhas mãos se tensionaram com a menção de utilizar a faca. Gemi quando a lâmina roçou mais contra o ferimento já aberto. -- Faça suas contas, Declan. Mesmo que acerte a mira, vamos ver qual corpo cai primeiro.
-- Minhas contas dizem que será o seu.
A voz veio por trás, acompanhada pelo som de uma arma sendo destravada. Era... Kota? Meus olhos percorreram ansiosos o grupo do outro lado do salão, e não vi nenhum sinal dele. Eu não estava delirando! Mas... Como? Minha mente voltou para o momento em que Kota reagira quando Velásquez disse que me mataria. O general simplesmente o empurrou para trás, pouco preocupado. Desde então, o meu foco estava em Velásquez, e não percebi que Kota usara o tempo para dar a volta no salão. O rosnado baixo do rei me disse que ele também não havia percebido. Declan Velásquez fora apenas uma distração.
Mas o rei forçou uma gargalhada.
-- O garoto? Sério? Já atirou em alguém, filho?
Kota hesitou.
-- Atirarei por ela. Atirarei pelas milhares de vidas que você tirou. Atirarei por Adam, porque embora eu nunca tenha gostado dele, admirava sua honra.
Uma lágrima escorreu pela minha bochecha. Do outro lado do salão, Velásquez nos observava com olhar concentrado, buscando saídas para a situação. De repente, uma luz se acendeu em minha mente. Fechei os olhos, respirando fundo, finalmente entendendo a intenção de Kota. Era arriscado, mas a nossa única chance. E depois de tudo o que fiz... Não daria à Velásquez a chance de perder esse momento.
-- E -- Kota continuou -- porque você quer destruir o que ele mais amou.
Por um segundo, o rei hesitou, a mão relaxando um pouco no cabo da faca. E foi o suficiente. O barulho ecoante do tiro. O grito do rei e o corpo pesando contra mim. Empurrei o braço de Marco Aurélio com força, me lançando para longe enquanto ele caía sobre os joelhos. Acabei tropeçando em meus próprios pés, e inevitavelmente fui ao chão. Pisquei, e Kota já estava ao meu lado para me amparar, a arma ainda apontada para Marco Aurélio, que segurava o ferimento na perna. Os soldados avançaram, dividindo a formação: três se encarregaram de vigiar os convidados, e os demais acompanharam Velásquez até o rei. Kota suspirou, voltando a atenção para mim e verificou meu pescoço. As mãos dele tremiam.
-- Tem pouco sangue. Acho que vai ficar tudo bem.
Mas eu não me concentrava em suas palavras. Meus olhos estavam fixos no rei, na arma que Velásquez apontou para ele.
-- Amélia, olhe para mim.
-- Sinto muito que tenhamos chegado a esse ponto, velho amigo -- falou Velásquez, em um tom mais baixo. Uma despedida.
Marco Aurélio não se dignou a respondê-lo. Seus olhos estavam em mim quando rosnou:
-- Te vejo no inferno, princesinha.
Kota pegou meu rosto entre as mãos e me obrigou a olhá-lo no exato momento em que a arma disparou. Os olhos azuis não deixaram os meus nem por um segundo, bloqueando a execução que acontecia atrás dele. As pessoas gritaram. Choraram mais. Se desesperaram com o seu rei morto.
Velásquez iniciou um discurso que não fui capaz de ouvir. Até mesmo Kota se tornou distante quando consegui ver o corpo do rei, a poça de sangue que se formava ao redor da cabeça. Sentia que os olhos vítreos me encaravam mesmo na morte. Como um aviso de que não me deixaria em paz.
Me obriguei a respirar fundo, a fazer meu cérebro pensar com clareza.
-- Acabou. Está tudo bem -- Kota sussurrou.
Eu sabia que não tinha acabado. A minha vontade era de simplesmente fechar os olhos e talvez dormir para sempre, mas fiz um esforço para me arrastar para longe dele e na direção do rei. Passei a mão no chão antes de me levantar, e o objeto brilhou fracamente antes de ser acolhido pelas dobras da saia do vestido. Kota também se levantou e foi para o meu lado, o semblante levemente franzido. Devon se juntou a nós, guardando o meu outro lado. Olhei para ele e inclinei a cabeça, que concordou levemente.
Reconhecimento e agradecimento.
Quando Velásquez terminou o seu discurso e voltou a concentração para mim, abri um sorriso amarelo. Meu corpo protestou quando dei dois passos à frente, e o general cobriu a distância entre nós. A expressão dele era de triunfo, de um rei que venceu a guerra, de um país que agora poderia ser dele, se quisesse.
Eu não permitiria.
-- Um bom plano, princesa. Devo admitir que me impressionou sua decisão de sacrificar aquelas pessoas.
-- Elas não foram sacrificadas. Cada um daqueles homens contribuiu para que o meu país fosse atacado, para que meu povo fosse massacrado. Por causa disso, não sinto pena.
E era verdade. Mas eu me fiz aceitar que minhas mãos estariam sempre manchadas de sangue, porque eu faria tudo de novo, se isso significasse ser a única maneira de salvar a minha nação. Nesse tempo entendi que um governante precisava ser gentil, da mesma forma que precisava ser rigoroso. Amor e respeito. Era meu dever tomar decisões difíceis, arriscadas, mas... Tinha que admitir que não demorei muito para arquitetar o plano. Para planejar a morte daquela gente.
Talvez eu realmente fosse um monstro por dentro. Talvez Adam estivesse certo e seria essa a nossa natureza. Velásquez me observou por um tempo que me pareceu longo demais, tentando ler a minha expressão irredutível.
-- Fico satisfeito que tenha aprendido.
-- Tive o melhor instrutor -- falei.
Velásquez não viu o movimento. Ele não reagiu quando enfiei a faca em seu peito, apontando para cima. Senti as luvas ficarem quentes com o sangue que as ensopava, mas me aproximei ainda mais, o suficiente para sussurrar em seu ouvido:
-- Você matou meu irmão. Matou meus pais. Tentou me matar. Relatou nossas fraquezas para os russos e iniciou um golpe de Estado. Ofereceu abrigo a milhares de pessoas e, quando elas finalmente chegaram em nosso país, você as manteve sob condições de servidão e cativeiro. Crimes imperdoáveis, puníveis com a pior das penas. Não posso simplesmente ignorar tudo isso. Mas você me ensinou a resistir, a ser forte, e por isso, somente isso, eu agradeço a você. Cuidarei das coisas agora.
Puxei a faca de volta, e ela tiniu no chão no mesmo momento em que os joelhos de Velásquez fraquejaram e desabaram. Ele arregalou os olhos, cuspiu sangue, e então tombou no chão, imóvel.
A porta do salão foi novamente aberta, dessa vez com uma onda de guardas portugueses invadindo preenchendo a sala. Meus soldados imediatamente entraram em posição de defesa, prontos para atirar. Senti Devon novamente ao meu lado. Mas quando os homens reconheceram os corpos no chão e olharam para minhas mãos ensanguentadas, pararam no meio do caminho, atônitos. Assim como os sobreviventes, eles simplesmente não sabiam o que fazer. Agora dois reis estavam mortos, e o destino das nações, incerto. A quem obedeceriam?
Foi Kota quem disse, os olhos fixos em meu rosto, a voz se engrandecendo salão:
-- O imperador está morto. Vida longa à rainha.
Abaixei a cabeça e comecei a chorar.
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Encontrada
Fanfiction"Os livros são tudo o que tenho. É como se, todos os dias, me perguntassem com suas capas brilhantes: 'quem você quer ser hoje? Que mundo quer explorar? '. Os livros me traziam batalhas, romances proibidos, o limite do ser humano. Era muito fácil f...