Epílogo

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    12 anos depois

Já era fim de tarde quando eles atravessaram o jardim. A menina ia na frente, cantarolando uma antiga canção de ninar, o vestido lilás voando a cada salto que dava para pular os ladrilhos. Na mão, levava um pequeno buquê de flores cor-de-rosa recém colhidas. O homem também carregava um buquê, apoiado contra o quadro que segurava debaixo do braço. Ele observava a garota com um certo quê de nostalgia, os pensamentos indo e voltando, passado e presente se misturando enquanto ele fixava o olhar na garotinha.

Não demorou muito para chegarem. Mesmo com a extensão considerável do jardim e a pouca luz, o lugar tinha uma marcação natural para ser vista de longe. A grande árvore, sozinha, exigindo espaço para a sua magnificência e beleza. A menina sorriu para as estátuas de anjos e querubins que a rodeavam e se ajoelhou na grama, apoiando o buquê na base do pedestal de uma das estátuas em mármore branco.

-- Papai, você acha que a mamãe vai gostar das flores?
 
Kota olhou para baixo. Aquele par de olhos azuis o encararam de volta, brilhantes com a expectativa e inocência que só uma criança é capaz de ter. Ele abriu um sorriso e se ajoelhou ao lado dela, afagando os cabelos ruivos.

-- Eu acho que ela vai amar. Por que não conta a ela como foi o seu dia?

A pequena logo se animou.

-- Mamãe, você não vai acreditar. Papai nos levou para cavalgar e Cassie caiu do cavalo! -- Ela arregalou os olhos, tapando a boca com as mãos. Lançou um rápido olhar para Kota antes de retomar a conversa. -- Desculpe, mamãe, papai pediu para não contar. Ele disse que a senhora ficaria uma fera!

Kota riu da explicação. Depois de voltar para o palácio com uma Cassandra chorosa e de joelho ralado no colo, ele pediu à filha mais velha que guardasse o segredo, já que a mãe daria uma bronca nos dois, e então iria rir da bagunça. Kota deixou a filha continuar a conversa, aproveitando o tempo para colocar o quadro e o próprio buquê ao lado do outro presente. Olhou para a pintura, para a bela mulher que estava ali e que sorria com amor para ele. Desviou o olhar e observou a pequena cópia daquele amor, ainda entretida na conversa que só ela podia escutar. Se parasse para escutar o tempo, ele conseguia ouvir a esposa dizer: se eu não tivesse visto essa criança sair de dentro de mim, poderia jurar que ela não é minha filha. Ela é simplesmente a sua versão feminina!  Kota sorriu, e então observou as gardênias brancas do buquê, idênticas às entalhadas no mármore, feitas por ele mesmo. 

Sinto sua falta, pensou. A brisa quente da primavera trouxe o cheiro das flores e bagunçou os cabelos de Kota. Por um momento, ele jurou que podia senti-la bem ali, ao seu lado, tocando-o e confortando-o.

Kota fechou os olhos e permaneceu assim por um tempo que não soube cronometrar. Ele evocou a memória dela, cenas do tempo que pertenceu a eles e mais ninguém. Lembrava-se nitidamente de um dia ensolarado, três primaveras atrás, em que ele e ela estavam na sala de artes onde Kota geralmente fazia os seus trabalhos. Ele estava próximo à janela, uma grande tela apoiada no cavalete. A paixão de Kota pela pintura não era tão grande quanto pela escultura, mas ele tinha acordado inspirado naquela manhã. Ele tinha misturado as tintas na paleta e, quando foi buscar seu objeto de adoração, ela o olhava com um riso nos lábios.

-- O que você está fazendo?  -- Ela perguntou de sua posição meio deitada no divã.

-- Pintando -- ele riu. Adicionou mais alguns traços na obra antes de observá-la novamente. -- E você?

Ela balançou o caderno no ar.

-- Desenhando.

-- Posso ver?

Kota começou a andar na direção dela, mas ela pressionou o caderno contra o peito e estendeu o braço, parando-o.

-- Nem pensar. Eu não terminei.

Kota fez bico.

-- Sério? Deixe-me ver!

-- Mostre-me a sua, então -- ela arqueou uma sobrancelha.

Kota se empertigou e voltou para seu lugar atrás do cavalete.

-- Não terminei.

Ela balançou a cabeça, rindo. A concentração voltou para o desenho e vez ou outra ela mordia a ponta do lápis de uma maneira adorável.  Kota ficou assim por um tempo, alternando o olhar entre a pintura e ela, até que os olhos incríveis se ergueram e estreitaram para ele.

-- Ok. Me fale o seu, que eu digo o meu.

Kota arqueou as sobrancelhas.

-- No três?

-- Sim. 1, 2, 3...

-- Você -- disseram em uníssono.

Ela sorriu.

-- Você está pintando um retrato em que eu estou desenhando você?

-- E está ficando maravilhoso -- ele concedeu, estufando o peito com orgulho.

Ela gargalhou e Kota largou paleta e tintas para alcançá-la, tomando-a em seus braços e beijando-a. Logo as meninas chegaram e todos eles se jogaram no chão virando uma mistura de saias e beijos estalados. Kota estava com suas duas meninas no colo, uma cabeleira ruiva e a outra negra, quando percebeu que ela os olhava com olhos marejados.

-- Amo você -- ela disse, apenas mexendo os lábios.

O peito de Kota se aqueceu com a lembrança. Por fim, quando olhou o relógio, já era tarde. Ele se levantou, espalmando as calças para tirar a grama.      

-- Vamos, Gisele? Está na hora do jantar.

A menina girou a cabeça para ele e acenou.

-- Amo você, mamãe. Estou com saudades.
   
Ela beijou a escultura e segurou a mão de Kota, pronta para voltar para casa. Mas ele se deteu por um momento. Olhou fixamente o rosto entalhado no mármore, sem fazer questão de esconder as lágrimas. A filha sabia o quanto ele também sentia a falta dela. Kota estreitou os olhos e respirou fundo para tentar não soluçar; para não tentar, pela enésima vez, abraçar a estátua até que ela ganhasse vida.
   
Feliz aniversário, meu Anjo.
   
A estátua observou enquanto pai e filha faziam seu caminho de volta para o palácio, para as paredes que voltaram a viver. Graças a ela, ao amor e tudo o que ela deu até o seu último suspiro. E ela ficaria ali, observando-os voltar todos os anos -- Kota mais vezes do que as duas filhas --, ao lado dos outros três membros da família que ficou conhecida por mudar um mundo. Um mundo pequeno, mas ainda assim um mundo. A estátua ficaria ali, na companhia das suas, sob a sombra do grande carvalho que os protegia e guardava. Para sempre ela eternizaria o seu nome, até que o tempo a desgastasse e a transformasse em tudo e em nada no mundo, e ela seria o vento e a luz e a terra e a água. 

E, talvez, no futuro, a História ainda se lembraria do nome dela. Daquela que trouxe esperança para onde parecia não haver mais nada. Mas, por enquanto, a estátua veria o mundo crescer e guardaria seu rosto, e as inscrições, seu nome:

   Amélia Maria Castillo
Amada rainha, esposa, filha e mãe.


***

Vocês pensaram que não ia ter epílogo, né?

Quem chorou levanta a mão o/

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