Capítulo 55 - Oh Senhor, leve esta alma, coloque-me no fundo do rio

102 8 4
                                    

(Titia aconselha vocês a lerem o capítulo ouvindo a música )

***

      Houve movimentação de tropas em todo o país. O risco de um ataque no que seria uma das datas mais importantes do país, senão do mundo, era muito alto. Velásquez não tinha certeza até onde as ambições de Marco Aurélio o levavam, então fez o que qualquer bom general faria: se preparou.
      O caminhão do exército desacelerou até parar no meio da estrada. O grupo de soldados saltou, correndo para a beira da estrada, e o veículo seguiu caminho. Kota observou quando um deles arrancou do chão o que seria a tampa de um canal de esgoto. Apesar do mal cheiro, todos desceram a escada sem dizer uma palavra, o rosto congelado em uma máscara inexpressiva. Velásquez olhou para o relógio no pulso, acenando para algo que Kota não entendeu.
      Eles desviaram para um túnel adjacente, contornando as ramificações até chegarem ao túnel principal. O caminho era iluminado pelas lanternas, e luz lançava as sombras dos homens na parede, distorcendo-as até que parecessem monstros. Um calafrio percorreu a espinha de Kota.
      Devon liderava o caminho, o único rosto além de Velásquez que Kota conhecia. Ele manteve todos em um ritmo de trote por quase quatro quilômetros, e Kota agradeceu mentalmente a semana de exercícios por deixá-lo um pouco mais preparado para isso.
      Mas não foi suficiente para impedí-lo de querer se jogar no chão ao final do que ele pensou ser o terceiro quilômetro.
      Kota estava distraído tentando controlar a respiração, e por causa disso quase bateu no soldado a sua frente quando Devon sinalizou para que parassem.
      Três homens armados bloqueavam o caminho. Kota retesou o corpo, pensando que atirariam, mas os homens abaixaram as armas,  reconhecendo o grupo, e um deles abriu caminho até o general.
      -- E então? -- Inquiriu Velásquez.
      O soldado bateu em continência.
      -- Tudo certo, senhor. Dois carros prontos para partir.
      -- Alguma surpresa?
      -- Não, senhor. Os quatro que montavam guarda foram neutralizados, mas...
      -- Mas?
      -- Caixotes de armamento, senhor. Todos vazios. Acreditamos que uma equipe saiu. Oito soldados, no mínimo.
      A garganta de Kota fechou. Aquilo significava que o rei planejara outro atentado para a noite. Ele olhou para o general, mas a expressão do homem ao seu lado era impassível.
      -- Certo. E a fronteira?
      -- Gás do sono. Meus homens estão se assegurando para que os portugueses não acordem até termos voltado.
      -- Ponto. Vamos em frente.
      Kota foi espremido e empurrado pelos soldados, que se amontoaram para formar uma espécie de formação de segurança ao redor dele e do general. A iluminação ali era fraca, mas eles já não precisavam mais das lanternas. Kota então percebeu que todos usavam o mesmo uniforme, a insígnia real portuguesa brilhando contra o cinza manchado da manga do casaco.
      Infiltração, ele percebeu com admiração.
      Kota não podia negar que ficou impressionado com a eficiência da equipe de Velásquez. Ele pensara que teriam problemas para atravessar, mas o capitão do general pareceu cuidar disso como se estivesse tirando uma sujeira da roupa. Talvez o problema não seja entrar, mas sair.
      -- Você vai enviar alguém para avisar que seremos atacados, não vai? -- Ele sussurrou para o general. Velásquez manteve os olhos no horizonte. -- Não vai?
      A repetição da pergunta soou mais como uma constatação incrédula do que uma pergunta em si. Ele já tinha a sua resposta. Antes que reclamasse, Kota viu a situação pelos olhos do general: eles não estavam na fronteira. Não sabiam que uma equipe havia sido enviada. Qualquer posição de tropas repentina demais pareceria suspeito. Eles tinham que contar com a astúcia dos demais membros da guarda do general para neutralizar a ameaça, ou então... Que Deus os ajudasse.
      Kota calou todas as perguntas que sua mente gritava para que fossem feitas e tentou prestar atenção no caminho que faziam. Se tudo desse errado, ele teria que saber como correr com Amélia por ali, sem ficar em dúvida pelas bifurcações que os levariam direto para a morte.
      Depois do que pareceu ser um longo tempo, eles subiram à superfície. Kota piscou com a claridade, os olhos demorando um pouco para se ajustar depois de horas no subsolo. O túnel terminava a poucos metros da fronteira, a construção metalica atrás deles estranhamente quieta, os arredores vazios, nenhum veículo tentando atravessar. Parecia um posto fantasma.
      Ainda que não corressem riscos, os guardas voltaram à formação de proteção, flanqueando Kota e o general até que estivessem sob o toldo da garagem do edifício. O ronco dos motores fizeram o som ganhar vida e, quando os carros apareceram, Kota não pôde deixar de notar os corpos que jaziam no interior sombreado da garagem. Ele pensou ter visto sangue, e segurou a vontade de vomitar.
       Concentre-se, pensou. Você precisa de foco.
      A equipe se dividiu para ocupar os carros. O Sol sumiu no horizonte, o céu se coloriu de rosa, laranja e lilás enquanto o SUV corria pelas estradas, a paisagem ao redor nada mais do que um borrão. Estavam isolados do mundo lá fora, mas mantinham o compasso entre as duas realidades. Aquela era um corrida contra o tempo. Contra o inimigo. 
      Eles eram o inimigo.
      Quando os homens desceram do carro e correram para um beco o céu já estava escuro, as ruas eram iluminadas por luzes coloridas e a capital parecia pulsar ao ritmo da música ao longe. Dessa vez Devon tatetou até encontrar a maçaneta de uma velha porta de madeira, escondida entre as sombras e os entulhos no canto do beco. Soldados se posicionaram atrás dele, apontando as armas para dentro do cômodo quando a porta foi aberta. Dois deles entraram, vasculhando o lugar para verificar se estava vazio.
      E estava.
      Depois disso, mais uma passagem secreta atrás de uma estante corroída. O túnel baixo, úmido, sufocante, pelo qual eles tiveram que seguir curvados. A posição e o peso das armas e das mochilas atrasava o movimento deles, e Velásquez grunhiu de frustração e impaciência.
      Kota, cansado e faminto, tentou não pensar em como o túnel se fechava sobre eles como se fosse um túmulo. O silêncio era denso demais, e ele desejou que um deles falasse alguma coisa. Qualquer coisa.
      Qualquer coisa. A frase lhe lembrava Violet e o quanto ela fora astuta para ludibriá-lo. Ele abriu o mínimo dos sorrisos, imaginando o que ela estaria fazendo. Iria para a festa da Corte? Seguiria a própria sugestão e se misturaria ao povo? Ou ficaria em casa, porque se sentia sozinha e sem companhia? Por mais que o último pensamento fosse deprimente, Kota desejou que ela fizesse exatamente isso, para que ficasse segura.
      No entanto, Kota não pôde pensar muito mais sobre isso. Ele sentiu a mudança no solo, as pernas pesaram mais, como se estivesse subindo uma colina. O túnel se tornou menos opressivo, e ele saiu da pedra para pisar em madeira. Devon, no alto, ergueu a lanterna para iluminar o grupo atrás de si.
      -- Chegamos -- disse.

EncontradaOnde histórias criam vida. Descubra agora