O Dragão das Sombras

336 88 116
                                    

Andriax estava vomitando em algum canto, prometendo a si mesmo que nunca mais iria beber. Agaxis sumiu, junto com mais quatro bailarinas. Agora todos os clientes do Alicórnio Bebum faziam um espaçoso círculo para assistir o combate. Dronar e o minotauro urravam com os punhos ao alto, cada um torcendo pelo seu campeão.

Shagda já estava rica, mas continuou coletando as moedas. Acostumado com brigas diárias, até o taverneiro com três olhos decidiu apostar. O orc de armadura branca, envolto em fios relampejantes, bate com o martelo de carneiro no chão. Além de fazer uma cratera na madeira, uma coluna de raios surgiu nesse ponto.

Essa linha vertical, tal como um efeito dominó, foi se duplicando em outras que seguiam em linha reta. O som de explosões contínuas se fez ouvir, uma atrás da outra em frações de segundos. Buraco a buraco, o chão foi se abrindo abaixo das descargas elétricas.

Qualquer humano mal teria visto os clarões antes de ser pulverizado pela fileira contínua de raios. O demônio de sobretudo, todavia, viu luzes balançando como cortinas na brisa suave. Ainda envolto em sua aura de chamas cor de piche, ele desviou. 

Caminhou tranquilo enquanto o mundo ao redor novamente era lerdeza absoluta. Decidiu parar bem na frente do cavaleiro barbudo, o negror dos olhos transbordando sarcasmo.

— Olé! — falou a menos de um metro de distância.

O guerreiro com o peito verde exposto na armadura abismou-se, tal como todos os presentes. Sem demora, o martelo já estava arqueando contra Kamilzedek. Quando a arma se deslocava no espaço, deixava um rastro de pequenos raios cintilando no ar.

Golpe atrás de golpe, o martelo não conseguia acertar o sujeito de cabelos roxos. Para a visão de todos, Kamilzedek simplesmente teletransportava-se de um lugar para o outro. Fazia questão de aparecer sempre ao alcance do inimigo.

— Que tédio — desabafou mansamente enquanto continuava a desviar-se em super velocidade. — Você até que é decente para os padrões do mundo terreno. Mas estou muitos níveis acima de você, mortal. Nem um acerto crítico te salva.

Dito isso, o demônio estalou os dedos durante suas esquivas. Todas as sombras da monumental taverna se moveram. Elas deslizaram pelo teto, paredes e chão como se fossem um líquido atraído magneticamente pelo azulão de calças listradas.

Em um piscar de olhos, as trevas se ergueram no ar, reunidas em uma massa informe acima dos lutadores. As sombras condensadas então incendiaram-se com chamas negras. A esfera flamante logo caiu sobre o orc, que mal teve tempo para notar sua existência.

O piso é sulcado por uma explosão, lascas de madeira voam por entre uma nuvem de poeira. Alguns ficam temporariamente surdos devido ao som agravado que ecoou na taverna. Afundado na terra, o orc zonzo estava com a proteção em pedaços, rachada em todos os cantos. Seu elmo virou cinzas, expondo uma cabeça careca e orelhas pontudas. O martelo já não produzia raios.

— Essa armadura sagrada não é das ruins — surpreendeu-se Kamilzedek, parado no mesmo lugar. — Outros não teriam sobrevivido ao meu fogo sombrio. — Ele dá um bocejo prolongado. — Então, se rende?

Os que estavam ao redor só conseguiam ouvir murmúrios da parte do cavaleiro. Porém, a audição aguçada do azulão captou claramente as palavras:

"Bendita é vossa graça,

senhora de toda a luz

Bem-aventurados teus seguidores,

semeadores da bondade

Eis que o mal ressurge

e às trevas nos conduz

Dai-me forças, grande Aéllea,

revela tua vontade!"

Os bardos ficaram perplexos. O som de harpas e cantos líricos ressoou em todo Alicórnio Bebum, ainda que nenhum deles estivesse produzindo aquilo. Os olhos do orc barbudo brilharam intensamente ao passo que se levantou dos escombros. Uma aura alumiada o recobriu, fogueando matizes cristalinas ao redor.

Ele ergueu o martelo de dois carneiros ao alto como se estivesse recebendo uma graça divina. Uma brisa insistente penetrou pelas janelas e lambeu a poeira da taverna, esvoaçando a roupa de todos ali. Espantados, alguns na roda comentaram:

— Esse martelo... não parece com aquele das lendas?

— Agora o pau vai comer solto!

— Será que o cara é o tal San Meldric?

— MAAATA!! Dá uma ultimate² nele!

Kamilzedek suspirou revirando os olhos (embora ninguém enxergasse isso, já que estavam totalmente pretos).

— Por isso não gosto de paladinos. Não sabem perder.

Enquanto raios voltavam a relampejar ao redor do orc de armadura quebrada, as chamas obscuras foram absorvidas pelo demônio. Um manto de pretura o envolveu completamente. Sua massa corporal então aumentou do nada, erguendo-se a cinco metros de altura, bem no limite do teto. Não bastasse isso, seu corpo de negridão se deformou.

Um instante depois, Kamilzedek era um gigantesco dragão de sombras. Seus olhos, ainda imersos em negrura, chamuscavam o fogo trevoso. Asas erguiam-se às costas, uma cauda balançava por trás. De pé sobre duas patas, seu focinho encarava o inimigo. 

A cabeça tinha sete chifres, dois deles destacando-se mais altos que os demais. Ao invés de rugir, ele gargalhou em um tom bizarro. Nesse ponto, a maioria dos espectadores começou a correr, desesperados — para a alegria de Shagda, que estava com todo aquele ouro.

O paladino radiante apontou a arma para o rival. Encheu os pulmões para bradar, ardendo de cólera:

— Por Aéllea, EU TE EXCONJURO!!!

O manto fúlgido do orc expandiu-se em uma área de quatro metros, cegando a maioria do público que restou. O martelo então lançou um raio dourado envolto por uma grossa camada de luz celestial.

Em resposta, o dragão escancarou a bocarra anavalhada. Cuspiu uma rajada de chamas negras que colidiu contra o ataque do oponente. Os dois ficaram apontando seus disparos um contra o outro enquanto uma esfera de energia crescia do choque dos poderes.

O chão começou a tremer. O vento liberado pela colisão incessante fez copos, garrafas e mesas voarem. Os espectadores corajosos que restaram precisaram se afastar. Rachaduras pipocaram em todos os cantos da taverna, o lugar parecia que ia desabar a qualquer momento.

Dronar escudou Shagda, que estava preocupada protegendo seu dinheiro. Andriax teria ficado muito assustado, mas estava desmaiado em cima do próprio vômito. Um barulho de eletricidade misturado ao crepitar ardente ensurdecia os ouvidos de todos ali.

Então o orc ouviu em sua cabeça:

"Você até que é poderoso, paladino. Mas a sua fé não é forte o bastante!"

De repente, o equilíbrio dos dois disparos é quebrado. O fogo do dragão de sombras começou a sobrepujar o raio dourado. Sua rajada de chamas avançou mais e mais até alcançar o cavaleiro de armadura branca.

Explosão.

O quarteirão inteiro se fez em pedaços, alçando voo dezenas de metros no ar. Todas as construções ao redor tremeram, outras desabaram. O som trovejante foi ouvido pelos quatro ventos. 

O Alicórnio Bebum agora resumia-se a incontáveis fragmentos de madeira espalhados em todos os cantos da cidade. Abaixo dos escombros, o corpo do orc já não passava de um punhado de brasa incandescente.


Muito longe dali, no alto de um penhasco, uma oliveira abre os olhos lilases. A anciã dá um suspiro e diz:

— Agora ferrou.

--------------------------------------------------------

² Golpe especial, o ataque mais forte.


☠☠ NECROFÚRIA ☠☠ Aventura de RPG Medieval 🏹 Ação, Guerra e Magia ⛥Onde histórias criam vida. Descubra agora