V • OSSOS & VESTIDOS • A Guerra do Multiverso

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A neve era escura como a sombra da lua. Os flocos e cristais caliginosos choviam das nuvens cor de sangue. O vento ecoava o rugido dos trovões mesclados às outras bestas que habitavam os céus.

 O solo era irregular, quase não havia planícies. Uma profusão de estalagmites gigantescas, de gelo negro, brotava de todos os cantos. Sulcadas na terra gélida, titânicas crateras abrigavam zilhões de seres. Vez ou outra uma chuva de meteoros frios ali se impactava, jogando-os ao ar como se fossem grãos de areia.

 No chão, monstros açoitavam, dilaceravam, mastigavam, esquartejavam cada um que cruzasse seus caminhos. Não havia para onde escapar. Sequer podiam morrer para que o sofrimento parasse.

Porque já estavam mortos.

Flutuando no céu, sobre um pandemônio de gritos de desespero, uma garotinha de aparência inocente observava. Ela não aparentava ter mais do que oito anos, sua pele era prateada e os olhos, totalmente brancos. Pequenos chifres despontavam pelo alto da franja.

Os cabelos eram álgidos e desciam até a cintura em cachinhos simetricamente enrolados. Ela usava um vestido negro, tão peludo quanto o cachecol de peles que recobria o pescoço. Às costas, nove caudas de raposa da neve balançavam divertidas.

— Eu senti falta dessa sinfonia de sofrimento. — A menina ouve uma voz familiar ao seu lado. — É música para os ouvidos, não é?

Ao olhar para trás ela vê um sujeito com pele azulada, os cabelos púrpura todos em cachos balançando ao vento. Vestia uma cartola e um sobretudo com símbolos mágicos bordados em fios de ouro. Usava um lenço carmesim no pescoço, camisa social branca e calças prateadas com listras pretas. Sem contar sapatos dourados com as pontas retorcidas em espiral.

— Kamilzedek... Você não seria tão estúpido de vir ao Sexto Abismo, seria? — Os olhos sem pupilas analisavam o demônio com um ar curioso.

— Assim você me ofende, Araztrael. Óbvio que não estou aqui. Esta é apenas uma projeção astral densificada o suficiente para termos uma conversinha. Meu corpo está em outra dimensão, lógico.

— O que te faz pensar que não posso rastrear seu cordão de prata até seu corpo, azulão?

O demônio sorriu.

— Até parece que não me conhece, raposinha. Eu criei vários clones de mim mesmo. Estão em dimensões, galáxias e sistemas solares diferentes. Boa sorte tentando encontrar meu eu verdadeiro.

A menina deu uma pirueta no ar dando risadinhas jocosas. Ela então flutuou como se se deitasse sobre alguma superfície e "apoiou" as mãos nas bochechas do rosto, os cotovelos curvados tal como se assistisse o conhecido.

— Não esperava menos do Mestre do Fogo Sombrio. Você sempre foi o mais esperto dos Senhores do Abismo, Kamilzedek. Inacreditável que tenha traído Khanzurxos por um mero mortal, mas nem todo mundo é perfeito, não é? Senti saudades. A que devo a honra?

O zyfraínn põe a mão no peito e faz uma breve reverência cheia de pompa. Sua cauda azul ondulou por entre a chuva de flocos.

— Fico lisonjeado, Dama da Neve Negra. Mas então, vim pela curiosidade. Que história é essa de Khanzurxos invadir o plano terreno?

A garotinha flutuou como se se deitasse de costas, observando as nuvens rubras relampejarem. Flocos pretos de neve lhe choviam no corpo, embora se desintegrassem ao tocá-la.

— Ah, ele é só um embuste. Um chafariz chifrudo para desviar a atenção dos deuses. A Imperatriz das Trevas já espalhou as evidências falsas provando que Khanzurxos está agindo sem seu aval.

— Deixe-me adivinhar — Kamilzedek interrompeu, sorridente. — Quando todos estiverem ocupados demais com o exército do Senhor do Nono Abismo, a Imperatriz atacará Atlantungard, a dimensão dos deuses... é isso?

— Pois é — A garotinha de pele prateada deu outro giro vertical no ar enquanto circundava o demônio.

— E os deuses antigos? Você sabe, as entidades cósmicas... Como a Imperatriz vai lidar com os poderosos Anciões do Multiverso? Os deuses com certeza pedirão ajuda a eles.

Ela flutuou acima do azulão, ficando de cabeça para baixo, mantendo o rosto a trinta centímetros deste. Seu vestido obscuro não parecia ser afetado pela gravidade, ao contrário dos cachinhos brancos. A Dama da Neve Negra fez uma voz de suspense:

— A Imperatriz não atacaria Atlantungard sem ter encontrado a arma definitiva...

— Não... não pode ser...

— Isso mesmo — A menina fitou os olhos roxos do zyfraínn. — Nós encontramos o Grande Antigo.

— Tá de zoeira... Klulu é uma lenda... Ele não pode...

— Faça as contas, Kami. Nem todos os dez abismos juntos seriam capazes de derrotar sequer uma única entidade cósmica. Nem mesmo todos os deuses unidos conseguiriam. A Imperatriz das Trevas não faria um ataque suicida a não ser que tivesse um ás na manga.

— Faz sentido.

A garota de nove caudas flutuou para a frente do azulão, ficando em posição normal. Os bracinhos prateados foram para trás, as mãos juntas.

— Você veio implorar perdão? Se juntar ao time? Já que vamos começar a Terceira Guerra Multiversal, a Imperatriz pode fazer bom uso de alguém com suas habilidades. Se conseguir falar diretamente com ela, sei que esta o libertará da soberania de Khanzurxos.

— Perdão? — Kamilzedek gargalhou. — O que acha que eu pareço, Araztrael, um mortal?

— Então... o que você quer?

— Não importa — O demônio deu uma risada maliciosa. — Afinal de contas, todos estarão ocupados demais guerreando, não é mesmo? He, he, he.

O sujeito de cartola e sobretudo estalou os dedos e desapareceu mais uma vez.


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