VI • A FORTALEZA DAS TREVAS • Vidas Passadas

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A mulher negra de túnica azul prussiano recitava palavras de poder diante de um pergaminho em um pedestal feito de ossos. Ela estava em um imenso salão cavernoso, no centro de um círculo de cabeças decapitadas. Das órbitas de cada uma, erguia-se uma vela negra cuja chama aumentava conforme as palavras eram declamadas. 

Símbolos cravejados na coroa de ossos sobre a cabeça da necromante começaram a pulsar um brilho verde. Os crânios pendurados em seu cinto estremeceram enquanto as cabeças do círculo soltaram gritos de horror e desespero.

O cabelo crespo que ia até a cintura retorcido em uma grande trança ondulou no ar, suspenso pela aura esverdeada que cobria a mulher. As pupilas sumiram dos olhos, a voz engrossou diabolicamente. O encadeamento de palavras prosseguiu por vários minutos até as cabeças do círculo explodirem em sangue, ossos, miolos e nervos.

Uma risada masculina ecoou no ambiente cavernoso, agora iluminado apenas pelo chamejar espectral emanando da necromante.

— Você é um fracasso tão ou maior que seu irmão, Yggnarus — disse Brontak, braços cruzados, o corpo apoiado na rochosa parede fria.

— Parece que alguém quer morrer mais cedo — a necromante disse em tom ameaçador, sem olhar diretamente para o careca barbudo. — Ouse me comparar àquele verme do Etherion outra vez e te garanto que haverá um servo a menos na equipe.

— Eu sirvo a Khanzurxos, não seu pai.

Yggnarus sorriu e virou-se para ele, as pálpebras se estreitando deleitosas nos olhos brancos.

— E Khanzurxos mandou você obedecer a quem? Pois é. Meu pai. Ou você acha que um cachorro sarnento como você teria culhões de realizar um ritual tão complicado como o Necrofúria? Vê se se enxerga, Brontak. Saia daqui e vá caçar um osso pra roer, vai.

O musculoso riu, sua cicatriz diagonal no rosto reluzindo com as chamas verdolengas da mulher.

— Não se preocupe, Yggnarus, eu já estava de saída. Na verdade, estava indo direto à câmara de seu pai para contar-lhe que um certo pergaminho proibido foi roubado da sua biblioteca pessoal. — Seus olhos caçaram um estalactite aleatório no teto, a voz derramando deboche. — Mas é claro que ele vai ficar de boas com isso. Afinal, Maodron de Jagfagak é realmente conhecido pela sua complacência com quem mexe nas coisas dele, não é mesmo?

Yggnarus ergueu o queixo e olhou para Brontak como se ele fosse uma barata que tivesse se erguido de um monte de estrume. Se aproximou lentamente, os lábios ainda curvados em um sorriso fechado. Ela parecia jocosamente fascinada pela audácia do sujeito.

— Ora, vejam só. Então você me seguiu. O que pretende, seu cão fedorento? Acha que pode me chantagear e sair vivo disso?

— Você se acha muito poderosa com essa sua coroazinha de Triungrandrel na cabeça, Yggnarus. Mas mesmo isso não lhe deu poder o suficiente para erguer o Cemitério Andarilho. — Ele deu alguns passos despreocupados na direção dela, parando a um metro e meio, ainda de braços cruzados. Suas sobrancelhas ondularam com malícia. — Não vim te chantagear, vou é te entregar mesmo. Antes eu só queria saber o que raios iria fazer com uma criatura desse nível. Só Maodron consegue invocar esse monstro lendário.

Nesse instante, Yggnarus já havia cogitado pelo menos vinte maneiras diferentes de matar o baixinho robusto. Mas todas elas envolviam uma morte rápida demais, sem tempo para um castigo tortuoso antes. Descartou esse pensamento e apenas respondeu, a voz ainda modificada pela transformação:

— Seu trunfo é parecer um idiota, não é mesmo? Mas não. Você não iria querer entregar meia informação para Maodron. Sabe que meu pai o castigaria pra valer se encontrasse qualquer inconsistência na sua suposta denúncia. — A necromante pôs o dedo no queixo cor de chocolate, ponderando um pensamento que cruzou sua mente. — Mas eu vou te contar, Brontak. Porque você será meu cúmplice.

As sobrancelhas grossas do barbudo se arquearam em um espanto intrigante.

— Que interessante. Agora poderei adicionar "traição" na minha lista de acusações. Khanzurxos vai adorar.

Yggnarus riu revirando os olhos — ou assim parecia, já que não se podiam ver a pupilas. Sentia-se explicando o abecedário a uma criança birrenta.

— Você não é o primeiro necromante a trabalhar com meu pai durante todos esses anos, Brontak. Você é apenas o que mais durou até agora, sem ser pego por paladinos ou grupos de aventureiros querendo salvar o dia. Eu sempre soube o que todos os servos de meu pai desejavam. A maioria queria poder; outros, o conhecimento das artes proibidas. Mas você é diferente.

— Vamos lá, vadiazinha. Fala pra mim o que é que eu quero. — Ele perscrutou o corpo de Yggnarus de cima a baixo com olhos abusivamente lascivos.

A necromante bufou. "Ralé sempre será ralé," pensou.

— Meu pai fez um dossiê sobre sua vida. A atual e suas reencarnações passadas, para ser mais exata. Não se sinta lisonjeado, meu pai fez isso com todos os servos para ter certeza de que a tendência moral deles não iria atrapalhar seus planos.

Ainda de braços cruzados, Brontak silenciou-se. Inclinou a cabeça, o queixo levemente erguido, as pálpebras estreitando os olhos amarelados. A mulher negra continuou:

— Quatro vidas atrás, você foi um bárbaro que lutou nas Guerras Élficas. Numa noite infeliz, entrou em berserk e matou seu pelotão inteiro. Foi decapitado por causa disso, claro.

"Na vida seguinte, você foi um anão açougueiro. Já ouviu falar no Grande Incêndio de Trawgakkyr? Sim. Um belo dia você achou que seria legal se visse todo seu bairro queimando. Só não esperava que o fogo se alastrasse tanto. Você morreu no incêndio, dando risadas.

"Séculos depois, você foi um goblin ladino. Você não só gostava de roubar, mas fazia questão de invadir todos os orfanatos que encontrava para degolar todas as criancinhas à noite. Foi comido por um troll em um roubo infeliz.

"Sua última reencarnação foi como um minotauro. Você não era apenas um ótimo guerreiro, mas excelente cozinheiro também. Claro que ninguém desconfiava que você era o motivo de tantos minotauros estarem sendo raptados na Cidade dos Cascos. Os pais choravam enquanto comiam a carne dos próprios filhos, sem que soubessem. Ninguém nunca descobriu, mas você morreu quando teve a má ideia de atacar um gigante sozinho."

— Você está inventando isso — Brontak falou, desconfiado.

— Estou? — Yggnarus sorriu malignamente. — No fim das contas, Brontak, você não passa de um psicopata que gosta de se divertir às custas de quem quer que cruze seu caminho. E você vai me ajudar por dois motivos muito simples. O primeiro é que, pelo visto, preciso de outra pessoa para me ajudar a erguer o Cemitério Andarilho. O segundo... É porque você odeia Etherion tanto quanto eu.

Yggnarus se aproximou do barbudo, sua aura fogosa agora balançando a capa negra dele também.

— Ou vai me dizer que, em todos as sessões de treinamento que meu pai te obrigou a ter com ele, você não ficou fantasiando maneiras diferentes de cortar-lhe a garganta, arrancar-lhe o coração, fazê-lo comer suas próprias tripas...?

Os lábios volumosos de Brontak se curvaram fechados em satisfação.

— Foi o que eu pensei. — A necromante deu-lhe às costas e voltou até o pedestal de ossos, observando o pergaminho. — Agora vá trazer mais treze cabeças de virgens. Estamos a poucas horas do eclipse, então me faça o favor de ser rápido.

Brontak desapareceu na escuridão da caverna, prometendo a si mesmo que mataria Yggnarus logo depois do Necrofúria ser realizado. A mulher, por sua vez, pensou em se desfazer dele assim que o Cemitério Andarilho estivesse pronto.    

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