Cinzas do Ódio

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O garoto negro de oito anos estava voltando para casa com uma pesada mochila nas costas. Anotações de livros de alquimia, herbalismo e animalismo recheavam sua mente. Ele não era o melhor da classe, mas pelo menos estava aprendendo o mesmo ofício da mãe: a druidisa que tanto admirava. 

As ruas de Brazandull ondulavam sinuosas como rios recheados de cores e luzes. O sol se despedia laranja no horizonte, flertando em um rubro irritadiço. Ao virar uma esquina perto de sua casa, uma adolescente bem conhecida por ele o intercepta, desesperada.

— Até que enfim te encontrei, Etherion!!

— Que é, Yggnarus? — O garotinho, acostumado com truques de mau gosto, manteve-se desconfiado da irmã.

— A casa tá pegando fogo! Layal tá lá dentro!

— Não brinca com isso, sua boba! Mamãe me explicou que todas as casas da cidade têm um campo mágico contra incêndios que ativa portais aquáticos!— Etherion tentou fingir que não ficou desesperado com a possibilidade da garota estar falando a verdade. — Sai da minha frente! — Ele deu um empurrão nela e passou reto, caminhando o mais rápido que podia.

Ao chegar no final do quarteirão, lágrimas gritaram em seus olhos. Havia uma enorme fumaça vindo de sua casa, que de fato estava em chamas. Havia um cinturão de desconhecidos ao redor; eles tentavam se aproximar, mas algum tipo de barreira invisível estava impedindo isso.

— Você precisa salvá-la, Etherion! — Yggnarus alcançou o irmãozinho e berrou-lhe às costas. — Alguma coisa infectou o campo de força e mais ninguém exceto a nossa família consegue entrar! Eu preciso chamar o papai e os magos arcanos, mas se você não for logo, ela vai morrer!

O jovem Etherion largou a mochila no chão e correu. Costurou por entre a multidão ao redor e atravessou a barreira de energia como se ela nem estivesse lá. Os cidadãos tentaram detê-lo, mas ninguém conseguia ir além do campo de força. O fogo, o calor, a fumaça... tudo isso assustava o garotinho. Mas a ideia de perder a mãe o aterrorizava mais ainda.

Assim que Etherion adentrou na porta, viu que labaredas ardiam por toda parte. Teve um gravíssimo acesso de tosse logo na entrada. Lembrou-se de que a fumaça tendia a subir e passou a andar bem abaixado. 

Tirou a camiseta e amarrou no rosto, criando um filtro improvisado para a boca e o nariz. Por entre o crepitar das chamas, ouviu gritos femininos vindo do porão e mais outra voz que não conseguiu identificar.

Etherion correu. Desviou de vigas despencando e ziguezagueou por entre os tapetes e cortinas chamejantes. Temporariamente, ele arrancou a camiseta do rosto para afastar as chamas na escada. Vendo que não conseguia, apenas decidiu pular por elas, correndo o mais rápido possível. A escada era curta: foi dando pulos e pulos até o fim dela.

Então, o garotinho paralisou ao ver aquela cena. Os gritos vinham de sua mãe, ela estava queimando viva... flutuando no ar.À sua frente estava Maodron, desesperado, riosde lágrimas escorrendo sob os óculos redondos. Em sua volta havia um círculo de velas cujas chamas ardiam em cores variadas. De imediato, Etherion entendeu o que causou o incêndio: um ritual.

— Mamãe!!! — o garotinho gritou. Viu que ela já estava nua e que as chamas estavam devorando pedaços avulsos de sua carne, vencendo músculos e deixando ossos à mostra. Metade do rosto dela já estava deformado, puro osso, enquanto a outra apenas agonizava.

Até ouvir a voz do filho.

— SALVE ETHERION!! — ela implorou ao marido, usando toda sua força de vontade para dizer algo inteligível além de apenas urrar de martírio.

Maodron, com o rosto todo úmido mesmo em meio às chamas e fumaça, sequer havia notado que o filho se encontrava ali. Ele deu uma última olhada para a esposa, como que se despedindo dolorosamente, e recitou palavras que extinguiram as chamas das velas. 

Ele correu para fora do círculo, agarrou Etherion e encarou o labirinto de chamas até conseguir sair da casa. Dez segundos após os dois saírem de lá, a estrutura desabou por completo. Etherion estava em choque. Não conseguia se lembrar de muita coisa depois disso. A imagem da mãe girava incessante em sua cabeça, um trauma que o perseguiria para o resto da vida.

Ele ficou chorando paralisado na frente dos destroços de sua casa por horas, sem enxergar ou ouvir mais nada ao redor. Mal percebeu que uma noite sem estrelas agora cobria o céu. Yggnarus, que havia trazido os oficiais do reino, chorava abraçada ao pai. 

Houve, contudo, uma conversa que o garotinho não pôde evitar de ouvir: quando a guarda real de Brazandull veio interrogar seu pai. Um homem com barba e uma armadura élfica por cima de uma túnica branca indagou a Maodron:

— Nossos peritos arcanos dizem que algum tipo de ritual de magia negra estava sendo praticado no porão de sua casa. Como bem sabe, todas as residências têm um sistema áurico que identifica esse tipo de energia e alerta imediatamente as autoridades. Mas parece que alguém conseguiu modificar o campo de força. Isso é magia nível ômega. O que o senhor sabe sobre isso?

— Meu bom senhor — Maodron era o desgaste em pessoa. Até sua voz saía fraca —, eu sou um mero bibliotecário. Minha mulher era uma curandeira da Ordem Vittas! Ela era uma Sacerdotisa da Vida! Acha que algum de nós seria capaz de criar um ritual de magia negra, ainda mais do nível ômega?

— Vocês teriam inimigos? Alguém que...

— Não! Somos pessoas de bem, não consigo pensar em ninguém que fosse capaz de fazer algo assim com a gente!

— Quem mais vive na casa? — O guarda lançou um olhar pesado para Etherion, como se tentasse identificar algum possível metamorfo de um reino inimigo disfarçado de criança.

Maodron agarrou o guarda pelo colarinho, erguendo-o do chão com toda a força que lhe restava.

— Acha que meus filhos são magos das trevas!!? Acha que mataram sua própria mãe?! É isso o que está sugerindo!?

Antes de terminar a frase, lanças com esferas azuis brilhando nas lâminas surgiram e circundaram Maodron. Os soldados ao redor estavam prontos para destruí-lo ali mesmo caso seu líder desse a ordem.

 Mas ele não deu. Em um lapso de empatia, o elfo reconheceu que o homem tinha perdido coisas demais por um dia. Ele ficou em silêncio até o bibliotecário sabiamente decidir soltar o oficial e apenas abraçar os filhos em resposta.

Depois disso, a vida dos três iria mergulhar em um mar de trevas sem fim. Mas de uma coisa Etherion tinha certeza: o pai estava mentindo. Ele viu que era Maodron no centro do círculo mágico. O garoto havia estudado o suficiente para entender que a mãe tinha sido o sacrifício.

O fogo que a consumia não vinha desta dimensão: ela estava sendo mantida viva para que cada gota de sofrimento fosse enviada como oferenda. As chamas a devoraram com uma lentidão morosa e mórbida, da mesma maneira que o ódio vinha consumindo o coração do jovem garotinho.

"Isso mesmo, Etherion," diziam as vozes em uníssono enquanto o pequenino chorava de tristeza e ira na frente da casa destruída. "Lembre-se. Lembre-se do que sentiu naquela noite. Viva esse sentimento. Não lute, afogue-se nele. Entregue-se ao ódio, porque ele te dará forças.

Porque só assim você poderá se vingar de seu pai. Somente o ódio poderá te libertar da dor..."    

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