O Presente Divino

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A planície era um deserto feito não de areia, mas de ossos e carcaças. Algumas costelas eram tão gigantes que pareciam com cordilheiras de montanhas. Erupções de fogo roxo surgiam abruptas e aleatórias, explodindo as colinas de ossos e fritando os resquícios de carne. Por todo o horizonte, avistavam-se tornados elétricos. As nuvens vomitavam raios avermelhados que se espiralavam em conjunto até atingirem o solo, destruindo tudo pelo caminho.

Por entre as dunas ósseas, um exército colossal aguardava sedento por sangue. Nenhum soldado era igual ao outro: alguns eram monstros de trinta metros de altura, outros eram do tamanho de anões, mas com cauda e sete braços. Alguns tinham três cabeças, outros eram serpentes grotescas, alguns eram feitos apenas de amorfa escuridão. Milhões de bestas grunhiam, xingavam, algumas até se devoravam, todas aguardando as ordens do general.

Na frente do exército havia um esqueleto vivo de uma quimera de cem metros de altura. Seus trinta tentáculos balançavam irrequietos enquanto ela portava uma plataforma grande o bastante para abrigar uma casa. E de fato, é exatamente o que havia lá em cima. Em formato de crânio dracônico, claro.

No salão principal do lugar, um ser de pele cinzenta e oito braços fitava um sujeito de cartola que havia se materializado ali, esparramado no maior dos confortos sobre um trono feito de cabeças  vivas. Elas soltavam gritos de horror e desespero, embora magicamente inaudíveis. Os lábios azuis do invasor sorriram ao falar para a figura à sua frente:

— Há quanto tempo, Drakynthar. Parece que o Senhor do Oitavo Abismo anda bem ocupado regendo todo esse exército, hein? Quanto tempo faz desde que nos vimos pela última vez? Setecentos milhões de anos? Acho que foi naquele último Concílio das Trevas, não foi?

A criatura estreitou os seis olhos sulcados na sua pele enrugada.

— Kamilzedek. — Sua voz era como a sinfonia macabra de mil bestas uníssonas. — O demônio que traiu a todos nós por um reles mortal. Sua respiração é uma heresia à nossa estirpe. Viestes desafiar meu trono? Se assim for, pode vir com tudo o que tens.

O zyfraínn gargalhou, os olhos roxos rolando divertidos pelo teto feito de tripas dilaceradas.

— Eu sequer estou aqui, general. Não vim batalhar, mas negociar contigo algo que pode ser de seu interesse.

— Não faço tratos com demônios fracos.

O azulão enrolou os dedos por entre os cachos do cabelo púrpura.

— Uau, essa deve ser a parte em que você fere meu ego, eu perco a razão, me teletransporto pra cá de verdade e nós batalhamos ferozmente, não é? Drakynthar, querido, nunca se perguntou por que Khanzurxos te nomeou regente deste Abismo? Nunca foi óbvio que ele queria um acéfalo cheio de músculos para que o obedecesse cegamente?

O grandalhão riu, a boca abrindo até além do lugar onde deveria haver orelhas.

— É isso o que os fracos sempre fazem. Se acham inteligentes e superiores. Até serem esmagados como insetos pelo poder verdadeiro.

Kamilzedek se ajeitou no trono, reluzindo os fios de ouro nos detalhes de seu sobretudo negro.

— Não entremos no mérito de uma discussão filosófica sobre o que é o poder verdadeiro, por favor. Meu tempo urge. A proposta é a seguinte: eu capturei um mensageiro dos deuses. O que acha, Drakynthar? Ter, em primeira mão, acesso a informações sobre Atlantungard... Com certeza, a Imperatriz das Trevas ficaria muito contente com sua presteza, não é mesmo?

Nesse momento, Kamilzedek estalou os dedos e um humanoide apareceu flutuando à sua direita. Ele estava com os braços e pernas apenas em ossos, mantendo a carne só no torso e a cabeça. Vestia o que sobrou de uma armadura dourada trincada em toda parte. Sua pele parecia ser cristalina, com um brilho multicolorido transluzindo o tempo todo. Uma mordaça feita de eletricidade negra cobria-lhe a boca, eletrocutando-o incessantemente.

Os seis olhos do general se estreitaram. Usou seu poder mágico para constatar que aquilo não era uma ilusão. Sentiu a aura do mensageiro... de fato, embora não um deus, ele pertencia ao povo divino. Por um momento, considerou a proposta.

— O que você ganharia com isso?

Os lábios de Kamilzedek se curvaram, satisfeitos. Ele cruzou as pernas no trono, realçando o contraste de suas calças prateadas com linhas pretas.

— Não sei ainda. Algo especial, com certeza. Você fica me devendo um favor, o que acha?

— Acho que está oferecendo demais e ganhando de menos. — O grandalhão deu alguns passos em direção ao trono de cabeças em agonia. — Ouvi rumores, Kamilzedek. Que você anda visitando os Senhores dos Abismos, um a um... Oferecendo presentes diversos e grandiosos.

— E irrecusáveis — o demônio azul completou, sua cauda ondulando toda confiante.

— O que está tramando? Quer convencer os regentes infernais que está do nosso lado? Acha que Khanzurxos o perdoará e o tomará como aliado? Tire essa ilusão pérfida da cabeça, zyfraínn.

— O que eu quero não faz a mínima diferença. O que realmente importa é o que você ganha com isso. É fato que ofereci algo valioso para cada um dos Sete Abismos antes de ti, mas o fiz em ordem de importância. Afinal, você concorda comigo que hierarquia é algo que deve prevalecer entre nós, não é mesmo?

Kamilzedek pôs os sapatos dourados com pontas retorcidas no chão, enfim erguendo-se do trono.

— Todos possuem algo importante, mas o mais importante eu reservei para o Senhor do Oitavo Abismo. É óbvio que não visitarei Khanzurxos, então isso quer dizer que você irá se destacar aos olhos da Imperatriz. Quem sabe ela até pudesse reconsiderar sua posição. Não seria ótimo ascender ao Nono Abismo, Drakynthar?

— Por que tenho a impressão que aceitar esse presente é mais importante para você que para mim?

— É claro que é importante para mim. Eu também quero ver a queda de Atlantungard. A ruína dos deuses, o fim das entidades cósmicas. Quero estar lá quando os demônios enfim conquistarem o Multiverso. Pode investigar, Drakynthar. Todos os presentes que ofereci são armas em potencial para combater os deuses. Mas você já é forte o suficiente, não precisa de uma ajuda dessas. Tudo o que você precisa é que a Imperatriz das Trevas te dê o reconhecimento que você realmente merece.

O humanoide cinzento se aproximou de Kamilzedek. Um de seus oito braços de puro músculo se moveu em direção ao azulão, a garra do dedo indicador pressionando lentamente sua camisa social branca. A voz unissonante de mil feras sibilou num tom de serenidade ameaçadora.

— Você está tramando alguma coisa, zyfraínn. Eu sei que está. Mas no momento, estando às portas de uma guerra, acho seu presente algo válido. Vou ficar com o mensageiro.

Kamilzedek, ainda risonho, ondulou as sobrancelhas num gesto galhofeiro e amistoso. Estendeu a mão cor de safira para o general.

— Então vamos selar esse trato do jeito tradicional. Sem contratos, apenas um bom e velho aperto de mão. Qual das oito quer usar?

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