O Sem Rosto

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Leo entrou logo depois, contrariado. 

Havia pouca iluminação do lado de dentro. Apenas quatro chamas envoltas em balões de tecido vermelho pareciam duelar contra a escuridão. Mais à frente, três mesas em formato de meia lua estavam postas em sequência uma do lado da outra.

À direita, uma toalha verde se esticava cobrindo a mesa por completo. Nesta, tinha um desenho de uma roda de carroça bordada em tom dourado. No centro da roda, uma estrela de seis pontas contornada por um circulo tocando em cada ponta, e um círculo maior formando a parte superior da roda. Ligando o círculo interno ao externo, existia uma fileira de linhas de modo que o espaço entre os dois círculos fosse fechado com quadradinhos em forma também circular. Dentro de cada quadrado tinha um símbolo. Um punhal em um, uma coroa em outro, candeia no próximo, moedas e outros símbolos diversos nos seguintes, os quais não pude identificar com precisão.

À esquerda, uma toalha azul semelhantemente escorria por sobre a mesa até tocar o chão. Desenhado no centro da mesa, uma estrela de doze pontas em um bordado dourado. Em cada ponta da estrela havia uma carta de baralho virada para baixo. No centro da estrela, três fileiras de cartas na horizontal. Acima e abaixo das fileiras uma carta posta em vertical, também virada para baixo.

Uma voz baixa, rouca e trêmula, ecoou pela tenda em tom sutil e moderado:

— Pegue uma.

Olhei ao redor, mas não vi ninguém.

— A carta, pegue uma carta. — A voz encorajou-me mais uma vez.

Caminhei até a mesa, sem compreender exatamente o que estava acontecendo e, então, movi a mão rapidamente em direção às cartas.

— Espere! — A voz me deteve antes que pudesse pegar uma das cartas. — Assim não. Não pegue qualquer carta, não faça isso de maneira aleatória.

Me recompus buscando pensar em como faria para não pegar uma entre as cartas viradas para baixo sem ser de forma aleatória. 

Como farei isso?

— Existe uma carta, apenas uma delas, que é a sua carta. A escolha certa. Não faça isso de forma casual. Boa parte dos erros cometidos está no fato de tomarmos decisões irrefletidas. Você sabia que grande número das calamidades que existem são fruto de decisões impensadas?

Balancei a cabeça, ainda ouvindo a voz, mas sem encontrar sua origem.

— Ó sim, não tenha dúvidas disso. As decisões mais triviais, corriqueiras, são aquelas que realmente constroem nosso futuro. Se somadas, compreenderão um número assustadoramente maior do que as chamadas grandes decisões. Não é engraçado?

— O que? — perguntei, sem entender direito.

— Nosso futuro é definido não pelas grandes decisões, mas pelas mais insignificantes. Aquilo que julgamos menos importante, na verdade, é o que realmente constrói nossa história.

A voz parou, como se desse tempo para eu pensar. Encarei aquilo com maior seriedade.

— Vamos, agora pegue uma carta.

Olhei para mesa, meus olhos percorriam sobre as fileiras de cartas. 

Como posso escolher a carta certa?, pensei. 

Busquei a concentração plena, tal como meu pai havia me ensinado. Senti o ar ao meu redor e o calor das chamas que iluminavam a tenda e, então, fui controlando cada uma das minhas sensações organizando-as racionalmente.

Os meus olhos pararam sobre a carta posta em posição vertical, que estava acima da primeira fileira na horizontal. Em um momento tive um lampejo, e com ele a certeza sobre aquela carta. 

Essa é a minha carta, concluí.

O braço moveu-se quase que de maneira involuntária alcançando a carta.

Ao virá-la de frente, notei uma figura esquisita. A face era toda branca e uma linha fina delineava o formato de um rosto, mas sem olhos, boca ou nariz. Não havia face, mas uma interrogação no centro.

— Traga-a para mim — disse a voz. Tive a sensação de descobrir de onde surgira e virei-me para frente.

Um tecido preto cobria a mesa central. Neste não havia nenhum desenho, apenas uma bola de cristal com um brilho bastante parco estava posta em cima. 

Estava tão absorto com o cenário que não reparei na silhueta por trás da mesa, tenuemente contornada pela fraca luz emitida pela bola de cristal.

Ao chegar mais perto, vi que era uma pessoa. Ainda mais perto, uma mulher.

Colares derramavam-se de seu pescoço. Em cada orelha tinha um brinco adornado com enormes pedras: verde na direita e azul na esquerda. Em sua cabeça enrolava-se um turbante roxo escuro.

Mais um passo a frente e pude ver seus olhos. Eles eram escuros, profundos, penetrantes, misteriosos.

Mais um passo a frente e senti a mão do Leo sobre meu bíceps tentando me puxar para trás. Balancei o braço com força e me livrei de sua pegada enquanto continuava caminhando para frente.

Mais um passo a frente e...

— Venha! — disse a mulher oferecendo-me a mão. Sua voz era fraca, parecia falhar. Mesmo assim, seu tom era misterioso e até mesmo desafiador.

— Dê-me a carta. — Ela pediu gesticulando com o dedo indicador, balançando-o.

Seus dedos eram finos, com unhas compridas e pintadas num vermelho sangue.

Dei-lhe a carta como pediu.

O Sem Rosto — disse com ar surpreso.

— O que significa? — indaguei.

— Essa é a questão — afirmou ela e se empertigou sobre a cadeira. — Veja, eu não posso dizer o que significa, mas sim, o que pode significar. — Ela afirmou e se inclinou um pouco para frente até que seus olhos se encontrassem com a escassa luz.

— Como assim? — questionei curioso.

— Ele não tem rosto. Sua face não foi revelada. Isso pode significar apenas duas coisas — falou e se deteve como se estivesse pensando em como falar.

— Quais são? — indaguei interrompendo sua reflexão. Senti como se borboletas voassem dentro do meu estomago. Uma sensação estranha de curiosidade medonha me assaltou. Era como se não quisesse saber e ao mesmo tempo quisesse. Eu sei, parece maluquice, mas foi exatamente como me senti.

— Primeiro, o fato de não ter uma face, pode significar uma grande mentira, uma ilusão, como se não fosse real. Algo que existe, mas não está de fato lá.

Não compreendi nada.

— Segundo, pode significar que alguém ocultou o futuro para que não fosse revelado. Isso já aconteceu outras vezes. É raro, mas já aconteceu.

— Como assim alguém ocultou o futuro? — As palavras pularam para fora de minha boca antes que eu pudesse segurá-las.

— Só um ser muito poderoso que não pertence a este mundo pode fazer algo desta natureza. — Ela respondeu num tom melancólico.

Ótimo, se eu não estava compreendendo nada, agora tinha piorado. Um ser muito poderoso que não pertence a este mundo? Existe outro mundo além deste?

— Venha! — chamou a voz arrancando-me de meu breve devaneio. — Dê-me sua mão. Deixe-me ler você.

Me ler? E como ela poderá me ler?

Continua...

O Descendente de Anur - Usuário do FogoOnde histórias criam vida. Descubra agora