Amigo ou Inimigo?

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Lentamente papai foi recobrando a consciência. Ao notar a aproximação do Curupira e do Mapinguari, instintivamente esboçou postura de batalha, mas mal podia levantar-se do chão. Ainda atordoado e nitidamente confuso, fez expressão de dor ao tentar se levantar enquanto respirava com bastante dificuldade. 

— C-Cuidado — advertiu com os olhos arregalados presos ao Mapinguari e fez como se fosse conjurar o keer.

— Calma, pai! — falei segurando-lhe pelo ombro no objetivo de tranquilizá-lo até explicar-lhe minuciosamente o ocorrido.  

Papai demonstrou-se assumidamente cético em relação a tudo o que ouvira, enquanto avaliava sem tirar os olhos do gigante da floresta e na estranha criaturinha ao seu lado.

— Então você estava nos esperando? — indagou meu pai com revelada desconfiança ao que Curupira apenas acenou positivamente com a cabeça. — E como sabia que viríamos?

Isso nem me passou pela cabeça!, arrazoei, sentindo-me um idiota por não ter pensado nisso antes.

 O pequeno ser de cabelos vermelhos espetados espremeu os olhos verdes numa expressão irônica e emendou num risinho arguto:

— Ahhh... Mas eu sei o suficiente sobre vocês para não me confundir, Mainz! — revelou.

— Como você sabe o nome dele? — questionou Leo.

— Sei de muitas coisas Leokus, filho de Loan, da linhagem Onare. Não só sobre o general aí — disse e apontou para meu pai com um gesto de queixo —, mas, também, que estão sendo perseguidos pelo império. Parece que Tarus está bastante interessado em você! — A criaturinha encarou-me arqueando as sobrancelhas. — Além do mais, sei o suficiente a respeito de todos vocês, inclusive sobre ela — concluiu e apontou o dedo para o casulo onde estava a minha mãe.

Todos ficamos sem reação, boquiabertos.

— Estão impressionados? Pois não fiquem. Não esqueçam que foi o próprio Pantanus que me enviou. Foi ele mesmo que me passou as minucias a respeito dos viajantes que eu ajudaria a atravessar a floresta.

Ainda atônitos, foi inevitável reconhecer que não havia possibilidade lógica de o Curupira saber tanto sobre nós, somando o fato de nunca termos nos encontrado. Aquilo pesou bastante a favor dele no sentido de confirmar que o que dizia era de fato verdade.

Depois disso, cessaram-se as perguntas e decidimos apenas observar a situação.   

Ousadamente o Curupira caminhou em nossa direção com os olhos fixos em meu pai.

—  Deixe-me ver isso — disse fazendo referência às costelas de papai.

O velho guerreiro demonstrou oposição, ainda não confiando plenamente no pequenino ser.

— Você está com duas costelas quebradas — constatou e continuou: — O problema é que uma delas está apontada para o seu pulmão. Se tentar se levantar daí, terá o pulmão perfurado e morrerá em poucos minutos.

Todos ficamos ainda mais surpresos com a revelação.

Como que ele sabe de tudo isso? Será que ele também é um sensorial?, questionei-me em pensamento. Mas ele sequer impôs as mãos sobre meu pai.

Sem esperar autorização e com a já conhecida petulância, Curupira aproximou-se ainda mais e colocou a mão direita sobre as costelas de papai.

— Hum... Você vai ficar bem — garantiu. — Deite-se com as costas retas no chão — ordenou o pequeno como se fosse um ancião. — Vamos  ver o que eu posso fazer.

Assim que papai fez como ordenado, ele abriu os braços e depois juntou as palmas numa batida seca. Permaneceu assim por alguns segundos e depois levou as duas mãos até o flanco ferido de papai. 

Assim que as pequeninas mãos encostaram no corpo dilapidado o velho espadachim deu uma leve contração de dor, mas foi advertido imediatamente pelo Curupira que num comando autoritário, recomendou-lhe que não se mexesse. 

Uma parca luz verde reluziu formando uma linha tênue entre as mãos do Curupira e a pele do meu pai, que permaneceu imóvel, mas com feição suspicaz. 

Poucos segundos depois o Curupira recolheu suas mãos e esboçou ar de satisfação.

— Como se sente? — perguntou.

— A dor... Sumiu — disse papai numa expressão de incredulidade.   

— Como assim? — objetei.  Ainda sem acreditar, impus a mão sobre o local que estava ferido e me certifiquei. Não é possível. Como ele fez isso?, indaguei-me ao perceber que as costelas estavam completamente curadas.

— Do mesmo jeito que você fez, ué! — respondeu a criaturinha e passou os olhos sobre mim de cima a baixo como se apontasse para algum exemplo.

No mesmo instante um clarão iluminou minha mente. Comecei a apalpar as partes do meu corpo que estavam lesionadas e fui tomado por espanto. O que aconteceu com o meu braço?, fiquei impressionado ao perceber que os ossos estavam inteiramente colados, tanto os do braço como os das costelas. E não era somente isso, até mesmo a sensação dolorida que me assolava desde a batalha contra o naelin havia desaparecido completamente.   

— Parece que nem você mesmo sabe o que está acontecendo, não é mesmo? — disse o Curupira no meio de um sorriso branco.   

Não é preciso dizer que eu estava chocado com tudo aquilo, e não somente eu, mas Leo e papai também me olhavam com os olhos arregalados.

Inesperadamente o Mapinguari demonstrou agitação. A fera havia permanecido ali conosco o tempo todo como uma sentinela, ainda que um pouco mais afastado. 

— Eu já sei, grandão — disse Curupira imediatamente encarando a besta gigante.  

Sem saber o que estava acontecendo, ficamos todos alerta.

 — Parece que alguém invadiu a floresta — informou. Mas não precisam se preocupar, cuidaremos disso — tranquilizou-nos o pequenino. 

— Nós estamos sendo perseguidos por caçadores do império — avisou papai. 

— Eles estão em nove — informei prontamente.

— Cinco cavaleiros, três turins e um mestre de bestas em uma serpente de fogo — revelou o Curupira antes que eu concluísse. — Eu já disse que vocês não precisam se preocupar, afinal, eu sou O Guardião da Floresta — assegurou com certa bravata como se fosse a coisa mais comum do mundo.

Curiosamente a criaturinha ficou em silêncio por um momento, levou a mão direita ao queixo e franziu o sobrolho como se estivesse pensando. Depois de alguns segundos estralou os dedos e se dirigiu ao Mapinguari:

— Grandão, cuide disso por mim. Não poderei deixar nossos convidados sozinhos.

A besta gigante pareceu compreender e sem demora embrenhou-se floresta adentro em busca dos invasores indesejados.

— Mas... Eles são muitos — advertiu Leo.

— Já disse para não se preocuparem com isso. O grandão dará um jeito neles — garantiu. — Você consegue andar? — perguntou olhando para o Leo, que assentiu com a cabeça. — Então venham todos comigo. Já está escurecendo e vocês não vão querer passar a noite aqui. Vou levá-los a um lugar seguro e quentinho onde poderão comer e descansar.

A tarde já avançava e um vento agudo e gélido denunciava que a temperatura ali durante a noite não seria das mais agradáveis. 

Um lugar seguro e quentinho... Instintivamente senti saudades de casa, mas, àquela altura, sabia que nunca mais retornaria para o lugar que um dia já havia chamado de lar. E isso me transpassou o peito como uma lâmina fria e impiedosa.

O Descendente de Anur - Usuário do FogoOnde histórias criam vida. Descubra agora