Emboscada

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Raitus e eu partimos em direção à Cidade das Pedras, ao norte de Toren, em AnToren, pela madrugadinha. O silêncio da noite contribuiu para que saíssemos sem sermos percebidos. Avançamos em marcha moderada, sem forçar muito a montaria. A viagem seria longa e precisávamos poupar energia, tanto a nossa como a dos animais. 

A noite estava fresquinha e o sereno noturno causou-me calafrios, que só não foram piores devido a longa capa escura envolvendo e abraçando meu corpo entregue por Raitus antes de partirmos. 

A densa escuridão escondia em seu manto caliginoso qualquer vislumbre do cenário a nossa volta. Até mesmo a visão do grande olho branco estava obstruída ocultando-a detrás das nuvens e nos privando de sua companhia.

O Grande Urso Pardo avançava confiante montado em seu mangalarga malhado e robusto. Sem o mínimo de iluminação para nos oferecer qualquer senso de direção, o homenzarrão marchava orgulhoso como se estivesse nos arredores de sua própria cama.

Um uivo agudo seguido pelo crepitar de galhos sendo amassados fizeram eriçar todos os pelos do meu corpo.

— Não era melhor viajar de dia? — perguntei, os olhos arregalados fixos na mata.

— E chamar a atenção indesejada? — respondeu por cima do ombro o homenzarrão a frente.

Seguimos avante por umas três horas e depois paramos em um descampado. 

— Aqui está bom — disse Raitus, desmontando.

— O que vamos fazer? — dirigi-me ao homenzarrão apeando logo atrás dele.

Ele me encarou com olhar despretensioso e acenou com a mão para que eu chegasse mais perto.

— Vamos descansar um pouco.

Mas nem estou cansado! Embora já estivesse com os quadris doloridos pelas três horas de cavalgada, já estava mentalmente preparado para três dias de viagem.

— Não vamos demorar — informou Raitus. — Só preciso forrar a barriga. — Ele passou a mão sobre a enorme pança. 

Seu gesto trouxe uma recordação familiar. A mente concentrada em Tautos e papai. Sabia que não seria fácil e que Raitus e eu corríamos grande risco de sermos capturados juntamente com eles. Mas era um risco que precisávamos correr. Eramos a única esperança dos dois, não podíamos falhar.

Sentado sobre a grama o grandalhão tirou um bolo de dentro de uma sacola e começou a comer, deixando os farelos se prenderem em sua longa barba minuciosamente tecida entre fios castanhos e prateados.

— Hum? — ofereceu ele, com a boca cheia e olhos espremidos.

Recusei gentilmente enquanto o homenzarrão metia outro pedaço enorme na boca antes mesmo de engolir o anterior. Em poucas mordidas Raitus comeu toda a provisão da sacola e esfregou as barbas espalhando pedacinhos de bolo por todos os lados. Em seguida, entornou o cantil na boca e bebeu deixando pequenos respingos escorrerem pelo queixo.

— Não seria melhor racionar? — observei. — Digo, a viajem é longa...

Raitus me olhou com um sorriso amarelo na boca e coçou a nuca.

— Eu não funciono bem com a barriga vazia — disse e deu três tapinhas na grande massa carnuda entre o tórax e a cintura. — E se acabar eu compro mais. — Raitus puxou uma pequena bolsa de couro de dentro da capa e chacoalhou. O tilintar metálico ecoou enquanto o homenzarrão me jogava uma piscadela.

Balancei a cabeça e devolvi um sorriso comedido, estava preocupado demais para agir com tamanha tranquilidade. Pra falar a verdade, estava nervoso e ansioso.

O Descendente de Anur - Usuário do FogoOnde histórias criam vida. Descubra agora