Partimos em passos rápidos por becos e valados da grande cidade. Uma parte bem menos atraente, por sinal. Pessoas maltrapilhas, cachorros latindo e lixo por todos os lados compunham o cenário.
O chão úmido, com poças em alguns locais refletia retorcidamente o brilho parco do sol quase sempre barrado pelas paredes das construções. Além da soturna aparência, o local recendia a excremento. Agradeci ao criador logo que saímos do ambiente fétido e aproveitei para puxar ar puro para dentro dos pulmões com o objetivo de me desintoxicar daquele cheiro.
Belo atalho, resmunguei em pensamento.
Leo percebeu meu olhar nauseabundo e deu um risinho sem graça enquanto levantava os ombros. Ele parecia estar se divertindo com a situação.
Saindo do labirinto de vielas, nos deparamos em outro lugar que parecia ser a parte dos fundos da cidade. Parei para recuperar o fôlego e ouvi um barulho seguido por um gemido. A área era um cercado quadrado de construções em tom acinzentado entrecortada por vielas que acessavam outras partes da cidade. O barulho me chamou a atenção e me deixou curioso para saber do que se tratava.
"Chaták", mais uma vez escutei o estalo, acompanhado de um grito, desta vez.
— Precisamos ir — lembrou-me o Leo.
Eu só conseguia me concentrar nos estalos e gritos.
"Chaták", mais uma vez o estalido rompeu o ar semelhante ao som de um galho quando se quebra. Desta vez sem grito, apenas um gemido lamurioso em protesto. Fosse o que fosse, estávamos bem próximos.
Eu segui o som que parecia ter origem detrás de uma construção velha cujas bases das paredes úmidas revelavam manchas escuras com nuances voltadas para um verde viscoso.
— Rav? — Leo me chamou sem sucesso. — E lá vamos nós de novo — murmurou com voz pesarosa enquanto me seguia.
Ávido por saber o que poderia ser aquilo, cautelosamente esgueirei-me por uma parede lodosa até chegar à quina do edifício, na parte dos fundos da construção onde a parede lateral e a dos fundos se encontravam. Coloquei apenas um dos olhos vagarosamente até que a visão pudesse alcançar a origem de onde vinham os estalos.
Um punhado de gente estava reunida em uma área aos fundos, entre as paredes das construções e uma cerca de madeira que parecia contornar uma propriedade vazia. Centralizada, uma grande carroça com uma gaiola de ferro estava com as grades abertas. À frente dela, um elevado de madeira plano e estreito se estendia em linha reta formando uma espécie de pequena plataforma. Um punhado de pessoas estava enfileirado em cima dela. Todos olhando para o chão. Tinham os pés e as mãos atados por correntes.
Pele avermelhada e os cabelos negros, vestimenta apenas cobrindo as genitálias. Muitos tinham a pele coberta por escoriações. As mulheres esbeltas e com os seios descobertos, os homens magros, porém fortes. Elas com cabelos compridos e eles com cabelos curtos, num corte arredondado.
Em frente à fileira, um motim de homens com os olhos fixos na plataforma, enquanto conversavam e gesticulavam com as mãos. Ora apontando, ora desenhando o ar como se reproduzissem com as mãos o que falavam.
Entre eles e envolta, outros homens fardados com armas presas à cintura observavam atentamente todo o perímetro. Três deles em cima da plataforma. Um segurando uma corrente grossa que passava pelos pés dos avermelhados prendendo-os em presilhas de ferro.
Andando pela plataforma, um homem grande e musculoso segurava um flagelo de couro de quatro pontas. Vestia calça e um colete de couro sem camisa por baixo. Um homem de baixo da plataforma apontou o dedo indicando para um dos que estavam sobre a plataforma. Então a fileira se desorganizou por uns segundos e...
"Chaták", mais uma vez o chicote desceu ligeiro sobre as costas de um dos homens que estava no alinhamento. As pernas tremeram um pouco, mas ele continuou de pé.
Leo colocou a mão sobre meu ombro e deu uma leve puxada.
— Vamos embora, Rav — falou pelas minhas costas. — Seu pai já deve estar irado nos esperando.
— Mas e essas pessoas? — Eu disse e senti a voz embargada.
— Não é problema nosso Rav — respondeu ele com semblante consternado. — Esses homens estão a serviço do império. São mercadores de escravos. É um dos piores tipos de gente com os quais alguém pode se meter. Está vendo aquele emblema nas costas daqueles homens? — Fez com o dedo indicando alguns homens que se vestiam com as cores azul, preto e vermelho. Nas costas de cada um dos homens havia um dragão vermelho bordado em cores vivas. Acenei positivamente com a cabeça para o Leo.
— O emblema do império.
— Exato — concordou ele. — Eles são intocáveis em Toren, praticamente acima da lei. Esses homens são mercadores enviados diretamente por Tarus.
— O que está acontecendo? — perguntei enquanto olhava para o Leo. Sua fisionomia séria, mas não tensa. Havia uma enorme diferença entre nós. Embora fosse apenas um ano mais velho do que eu, em termos de experiência e conhecimento, uma distância abissal separava-nos por completo. Mesmo assim, ele em nenhum momento se demonstrava superior a mim, pelo contrário, respondia minhas perguntas de maneira sempre solícita. Sua postura obsequiosa não permitia que me sentisse desconfortável em perguntar, embora a situação deixasse-me encabulado.
— Eu prometo que te conto depois — disse espremendo os lábios com olhar determinado —, mas agora precisamos ir. Fiz uma promessa ao seu pai e pretendo cumpri-la — concluiu enquanto segurava em meu ombro. Eu concordei e partimos.
Com Leo à frente mostrando o trajeto, seguimos novamente, para tristeza do meu estômago embrulhado, por uma parte ainda mais escura da cidade. Nesta, as paredes das construções ainda mais próximas umas das outras deixavam apenas um estreito caminho ladeado por enormes e úmidos monólitos cinzentos.
Enquanto passávamos correndo, em velocidade razoável, podia notar pessoas sentadas em meio aos entulhos esparramados pelos becos e valados. Ainda que a maioria esmagadora fosse de homens, também vi algumas mulheres entre eles. Não havia crianças e todos os homens estavam sem camiseta expondo seus corpos esqueléticos.
Involuntariamente, meu olhar fixou-se em um homem de pele escura queimada de sol, que estava sentado disputando por aquilo que parecia um pedaço de pão com outro homem semelhantemente entanguido.
Ao observar com mais cuidado, percebi que um deles não tinha um braço, enquanto o outro tinha as pernas atrofiadas.
Prestando mais atenção, notei que todos ali carregavam algum tipo de deficiência ou deformidade. No entanto, antes que eu pudesse raciocinar, fomos surpreendidos por algo inesperado.
Um estalido seco se propagou pelo ar pegando-me de surpresa e causando espanto.
Quando me dei por conta do que havia ocorrido, Leo já estava estirado no chão desacordado.
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O Descendente de Anur - Usuário do Fogo
Fantastik#1 Lugar em Fantasia em Os Tops do Ano 2017 Balrók, o Caçador, montado em seu leão de fogo juntamente com mais sete cavaleiros negros invadem o pequeno vilarejo de Nanduque em busca de um grupo de rebeldes fugitivos. Um comerciante local, o tapeceir...