Pensamentos Deprimentes

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— O povo torenkai só reconhece a força — declarou Jared quando questionei o motivo da reação da multidão depois da luta. — Você provou seu valor e honra ao vencer o Grande Lobo Cinzento no Desafio Torenkai. E isso é um feito muito notável, hã! — Ela levantou o indicador recostando-se na velha cadeira ao lado da cama mordiscando o lábio inferior.

Acenei afirmativamente com a cabeça.

— Por que Lobo Branco?

Jared me olhou de cima abaixo, mas com maior ênfase sobre os meus cabelos.

— London venceu o Lobo Negro e se tornou o Lobo Cinzento. Você derrotou o Lobo Cinzento e se tornou o Lobo Branco — afirmou e apontou o queixo em minha direção. — Certamente o mesmo aconteceu com você em relação ao Lobo. O branco você já deve suspeitar o motivo, hã?

Acenei mais uma vez com a cabeça em concordância e escorreguei os lábios num sorriso de compreensão. Jared também sorriu.

— Como você aprendeu a lutar daquele jeito, menino, hã? — questionou ela com sua melhor expressão de surpresa.

— Foi o meu pai — respondi instintivamente sem pensar.

— Então, seu pai era um guerreiro?

— Não... Q-Quer dizer...

— Vamos, garoto, não minta pra mim, hã?

Fiquei embaraçado com a situação e comecei a gaguejar.

— E-Ele era um...

— Já disse que você não precisa mentir para mim, Ravel — afirmou Jared com contundência. Foi a primeira vez que ela me chamou pelo nome. Hesitei, sem resposta. — Eu sei que você mentiu pra mim. Aliás, vem fazendo isso desde que o acolhi debaixo do meu teto, hã?

— E-Eu não...

— Garoto — disse interrompendo-me —, eu já vivi o suficiente para saber quando alguém está mentindo pra mim, hã? — Senti o rosto queimando e os olhos vacilantes. — E também já vivi o suficiente pra saber quando alguém mente com o objetivo apenas de se proteger — afirmou abrandando a face em uma expressão condescendente e se calou por alguns segundos.

Cada palavra da senhora torenkai causando-me uma sensação terrível de desconforto. Como ela descobriu? Me senti nu diante das suas declarações e resolvi não argumentar mais. Até porque não adiantaria.

— Eu sei que você está escondendo algo, mas também não importa — confessou, relaxando as mãos sobre o apoio da cadeira e vendo o meu total constrangimento. — De um jeito ou de outro todos nós temos os nossos segredinhos, hã? — Ela virou levemente o rosto de lado e me jogou uma piscadela.

Estranhamente a postura de Jared fez com que me sentisse a vontade com ela, mesmo sabendo que minhas mentiras haviam sido descobertas. Ainda assim, algo na velha senhora me soava ao conforto e segurança familiar.

Ficamos em silêncio por um momento, evitando os olhos um do outro.

— Foi mesmo o meu pai que me treinou — assegurei, olhando para as próprias mãos enquanto cruzava e descruzava os dedos.

— Hum — disse ela. — E ele realmente está morto?

— Eu não sei — respondi com sinceridade.

— Entendo. É por isso que você está aqui no Arvoredo Torenkai?

— Sim — admiti. — Ele mesmo ordenou que eu procurasse pelo Urso Pardo. Por isso estou aqui. — Meus olhos se cruzaram com os de Jared. A velha mordiscou os lábios e balançou o queixo para cima e para baixo.

— Mas isso não será mais um problema, pois amanhã você irá conhecer o Grande Urso Pardo, hã! — afirmou, embora o tom de sua voz sempre soasse de modo bastante enfático no final de cada frase, tornando uma difícil tarefa descobrir quando ela estava afirmando ou questionando algo.

Dito isto a simpática senhora retirou-se deixando-me só no pequeno quarto aconchegante. Já havia se passado dois dias desde o desafio. Mais uma vez ficara acamado devido aos ferimentos e aos reflexos do uso do keer, que desta vez, pelo menos, não foram tão avassaladores quanto antes.

No terceiro dia a contar do desafio, seria o grande dia em que visitaria o tão esperado Bosque do Rei e a esperança de encontrar o tio Tautos e o Grande Urso Pardo ardia dentro do peito.

A imagem do meu pai de tempo em tempo me vinha à mente arrancando-me profundos suspiros e alguns calafrios. A visão dele saltando e se precipitando contra o exército inimigo foi a última memória que minha mente guardava dele. Onde o senhor estiver aguente firme, pai. Não importa como ou com quem, eu irei te salvar!

Repetia essas palavras para mim mesmo quase toda hora. Isso manteria acesa a esperança de que ele de fato ainda estava vivo em algum lugar além de continuar alimentando algum propósito para a minha existência. Ah, a existência. Um vazio profundo me abatia ferozmente ao contemplar o quarto vazio. Lutava contra ele com todas as minhas forças até afastar a imagem do jovem ensanguentado sobre o azevém seco. Leo...

Não tinha tempo e nem coragem para enfrentar esse sentimento. Precisava me concentrar em encontrar Tautos e o Urso Pardo e, enfim, conseguir alguma informação a respeito de meu pai. Certamente o Urso Pardo saberia de alguma coisa, doutro modo, papai não teria recomendado que o procurássemos.

— Falta apenas um dia — suspirei baixinho, caminhando até a janela.

O dia a dia no arvoredo havia mudado muito desde o desafio. Os arredores da casa de Jados e Jared agora viviam rodeados de curiosos, que tão logo sorriam e acenavam assim que eu botava a cara na janela. Sempre acenava de volta com certa satisfação sentindo a pulseira amarela de identificação balançando em meu pulso direito. Definitivamente agora eu era um cidadão reconhecido dentro de todo o arvoredo.

O dia passou devagar, enquanto eu combatia a minha ansiedade pensando nas possibilidades que me aguardavam. Como vou encontrar o Tautos? E se ele for o Urso Pardo?, uma pontada de alegria me subiu ao peito. Seria como derrubar dois pássaros com uma pedrada só, mas logo minha mente apresentava algumas objeções. Se Tautos for o Urso Pardo, então, porque meu pai não mencionou isso de uma vez?

As ponderações e conjecturas ora jogavam o meu ânimo lá para cima, ora bem lá para baixo. E se o tio Tautos nem estiver aqui? E se ele tiver sido capturado? E se ele estiver m...

Esfreguei o rosto e sacudi a cabeça na tentativa de afastar aqueles pensamentos deprimentes. Amanhã, Ravel, o amanhã trará as respostas.

Ainda era tarde e o dia brilhava bem forte, mas me bateu uma vontade de me deitar para que o dia passasse logo. Seria tão bom dormir depressa e já acordar no dia seguinte... Respirei fundo mais uma vez e fiz exatamente isso. Deitei-me e procurei pelo sono, que pareceu tão distante de mim como o norte do sul.

Não tive fome, nem sede, apenas um desejo ardente de que aquilo tudo fosse um cruel pesadelo e que ao acordar estaria novamente em meu quarto em Anzare com minha mãe na beiradinha da cama e meu pai me enchendo com as tarefas do dia. Mas eu sabia que por mais que desejasse aquilo, o pesadelo era real, e o anseio de voltar para a minha casa em Anzare juntamente com meus pais não passava de um sonho longínquo e inalcançável.

A ansiedade aos poucos convertendo-se em melancolia. No início tentei lutar, mas acabei desistindo. No fim das contas fui vencido por um sentimento devastador que me afundou em recordações saudosas e deprimentes. A casa, o jardim, o grande monólito cinzento. Cada lembrança uma estocada fria no peito. Assim permaneci durante horas, perdido em pensamentos, e então, entre lágrimas e soluços, acabei pegando no sono.

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O Descendente de Anur - Usuário do FogoOnde histórias criam vida. Descubra agora