Possessão

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Nós? Como assim nós? Preferi não perguntar. Mais por medo da resposta do que outra coisa. 

Pela primeira vez me bateu uma vontade de ouvir o Leo e correr dali.

Ela permaneceu sentada, com o pescoço e os braços rijos. Seus olhos, porém, estavam fechados e suas mãos atrofiadas.

Senti novamente a mão do Leo segurando em meu braço. Sua respiração estava ofegante e eu podia sentir um leve tremor em seus dedos. 

Eu estava me borrando de medo, mas a curiosidade e o desejo pelo desconhecido lutavam contra o medo na mesma força e intensidade.

— Rrrrrrrrrrr — rosnou a mulher prendendo nossa atenção. 

Desta vez senti uma pontada no estômago. Talvez fosse um aviso para que eu fugisse dali.

Ela se contorceu e veio à frente encostando o peito na mesa apoiando-se sobre as mãos que pareciam duas garras. 

Neste momento ela começou a chilrear algo entredentes numa espécie de canção em um ritmo assustador e depois disse:

— Venha à frente meu jovem — Sua voz era rouca, mas agora estava forte. Uma tonalidade completamente diferente da de antes. Quase masculina.

Embora o medo tentasse me deter, de alguma forma encontrei forças e inclinei-me para frente até ficar com o rosto próximo ao dela. 

Ela elevou sua mão direita e segurou em meu queixo apertando-o com os dedos e aproximando ainda mais meu rosto do dela.

Ficamos assim durante alguns segundos. Depois, estranhamente, ela começou a me cheirar. Quer dizer, cheirar não, ela começou a me farejar como se fosse uma fera.

— Ora, ora, o que temos aqui? — disse franzindo o semblante. — Podemos sentir o cheiro e o sabor do seu sangue — falou e lambeu os lábios.

Seu hálito era azedo, suas mãos frias e sua respiração forte fazia um chiado irritante.

Fulen ton asquem — falou em uma língua que não pude entender — Quem é você filho de anur? — perguntou.

— Me diz você! — contrapus com certa ousadia e uma arrogância que eu não tenho ideia de onde saíra.

— Ó sim... Nós diremos. Você nos desafia pobre mortal? — disse e chegou muito próximo. 

Uma sensação estranha me sobreveio. 

Soube naquele mesmo momento que Madame Odem não estava mais ali. Quem estava ali, ou melhor... o que estava ali, eu não sei.

Com o rosto quase colado ao meu, a coisa até aquele momento permanecera com os olhos fechados.

Algo completamente inesperado aconteceu quando ela abriu os olhos.

Neste instante vi como se fosse um vulto escuro, quase uma fumaça negra, que a envolvia contornando-a por inteiro. 

Alguma coisa havia assumido o corpo de Madame Oden. Estranhamente, de um jeito inexplicável, soube que aquilo não era deste mundo. 

Embora a luz estivesse muito fraca, eu podia ver nitidamente.

Num lapso de segundos, rápido demais para que eu pudesse ver com precisão o que estava adiante de mim, assim que seus olhos encontraram os meus, ela deu um grito agudo e fortemente empurrou meu rosto com as duas mãos.

Depois disso ela deu um pulo para trás, como uma preza assustada ao notar a presença de um predador. Abruptamente tropeçou na cadeira e caiu encolhida no chão atrás da mesa onde permaneceu em posição fetal com ambas as mãos cobrindo-lhe os olhos.

Saia de perto de nós — gritou e encolheu-se ainda mais. — Esses olhos... Esses olhos vermelhos — repetia freneticamente. — Por favor, saia daqui. Nos deixe em paz. Não nos atormente antes do tempo!

Enquanto ela gritava, as outras quatro mulheres entraram na tenda como raio a se deslocar no céu em dia chuvoso. 

Elas correram até onde a mulher estava caída tentando acudi-la.

— O que está acontecendo aqui? — vociferaram com ímpeto.

— Eu não sei — respondi atônito, sem saber o que estava acontecendo.

Leo puxou-me pelo braço e insistiu para que fôssemos embora.

Assustado, desta vez eu concordei. 

Saímos espantados sem saber o que acontecera e andamos rápido pelas ruas sem parar e sem olhar para trás. 

Quando nos misturamos entre a multidão, tendo andado já por um bom tempo, eu parei de frente para o Leo em busca de respostas.

— O que foi isso? — perguntei.

Ele comprimiu os lábios, deu de ombros e fez sinal com as palmas das mãos para cima.

— É claro que você sabe — afirmei.

— Não, eu não sei — disparou parecendo confuso.

— Então porque desde o início você tentou me impedir? Não me parece que foi sua primeira experiência com esse tipo de coisa.

Ele pareceu surpreso com a pergunta e tentou se esquivar de alguma forma.

— Anda, reponde! — indaguei com rispidez. Só então percebi o quanto estava alterado.

Leo ficou em silêncio. Seu semblante era uma confusão.

— Sabe — começou a falar, inseguro —, há uns dois anos atrás eu entrei em uma tenda semelhante. Uma situação muito parecida aconteceu. A mulher supostamente recebeu alguns espíritos que me disseram coisas óbvias demais sobre meu futuro e depois me cobraram uma moeda de prata. Quando me esbocei contrariado a pagar, elas ameaçaram gritar insinuando que eu havia tentado arrancar a virtude de uma delas à força. Saí de lá decepcionado com minha burrice e com menos uma moeda de prata na bolsa.

— Não exigiram algum pagamento seu desta vez, exigiram? — questionei.

Ele balançou a cabeça.

— Então algo muito estranho aconteceu.

Leo aquiesceu com a cabeça.

Caminhamos em silêncio por alguns minutos sem direção. Precisava ponderar sobre o que havia acontecido. Então, o Leo parou e me chamou:

— Rav — disse e segurou a voz antes de continuar, olhando-me nos olhos. Fiz sinal para que ele prosseguisse. — Não conte sobre isso a seu pai. Sabe como ele é. Além de dar uma bronca em mim, provavelmente vai deixar você de castigo.

Concordei, sabendo que Leo estava com razão.

Depois disso seguimos para a ala da cidade onde estava acontecendo o festival de contação sem trocar nenhuma palavra.

O Descendente de Anur - Usuário do FogoOnde histórias criam vida. Descubra agora