Encrencado

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Pela primeira vez em dias deixei o quarto com a ajuda da Sra. Jared. Caminhamos bem cedinho, enquanto a bruma matutina envolvia toda a cidade das árvores. Embora a maioria das pessoas estivessem dormindo, estava bastante animado a esticar as pernas e respirar ar fresco.

Estava vestindo roupas largas cedidas por Jared. Provavelmente deviam ter pertencido ao seu filho, mas escolhi não perguntar e evitar inconvenientes. Nem é preciso dizer que eu quase sumi dentro das vestes.

Vez por outra cruzávamos por outros torenkais e podia sentir os olhares perscrutadores sobre mim. Não é de se admirar... Eu parecia um floco de neve perdido no meio de um batatal. Durante o percurso — que não foi muito longo — notei que Jared evitava se aproximar das demais pessoas.

— Veja — disse apontando para o oeste. — O arvoredo é subdivido em vários repartimentos. Aquela, por exemplo, é a área dos lenhadores. Ali... — Apontou para o norte. — O território dos caçadores. Ao sul temos a parte dos operários e assim por diante. Temos ainda a divisão médica, suprimentos, fazenda, comercial e muitas outras. — Ela virou-se de frente para mim com feição animada. — Atrás de você, naquela direção — disse e esticou o braço para o leste —, está o Bosque do Rei. 

— Interessante — falei, admirado, sem compreender direito a menção repentina sobre o assunto.

— Sim — concordou. — É lá no Bosque do Rei onde se encontram os principais guerreiros, como as Seis Bestas de ArToren, por exemplo. — Sua fisionomia revelando certo aprazimento. Intrigado, comecei a prestar ainda mais atenção em suas palavras. — Jados e eu somos da área de suprimentos e uma vez a cada meia quinzena levamos provisões para lá. A próxima carga será levada amanhã — disse ela com feição amistosa e me lançou uma piscadela.

— Será que...

— Mas vamos com calma, mocinho, hã?! — censurou-me. — Apenas pessoas autorizadas podem entrar. Mesmo assim, Jados e eu vamos ver se conseguimos alguma informação sobre o seu amigo Tautos. Com sorte, até um recado, quem sabe...

A informação me deixou animado. Era pouco e incerto, mas já era algo. Comecei a ansiar pelo dia seguinte na expectativa de que Jados e Jared pudessem conseguir algum parecer favorável sobre o tio Tautos.

Voltamos para casa logo e passei o dia praticamente sozinho entocado dentro do quarto enquanto Jared e Jados se ocupavam com os ajustes das provisões para o próximo dia.

Foi um suplício entediante passar o dia sem companhia alguma, então, dediquei o tempo para me exercitar na reflexão sobre tudo o que havia aprendido nos últimos dias. As Leis do Keer, suas potencialidades, herança de sangue, e afins foram sendo revisados mentalmente um a um.

Com a mente concentrada nestas ocupações, quase nem percebi o dia passar. À noitinha Jared e Jados retornaram e desfrutei da companhia interessante da velha senhora enquanto discutíamos debruçados sobre assuntos triviais.

— Tome isso — disse ela entregando-me uma argola amarela feita de fios entrelaçados. Preso em um nó havia um pequeno pedaço de madeira. — Coloque isso em seu pulso esquerdo. — Fiz como recomendara. — Essa pulseira irá identificá-lo como um convidado da minha casa, da repartição de suprimentos. — concluiu recostando-se na cadeira.

— Mas porque devo usar isso?

Jared passou a mão sobre o queixo e ergueu uma das sobrancelhas como quem pensasse em uma resposta...

— Torenkais não são... — Hesitou. — Como posso dizer... os mais hospitaleiros e receptivos quando o assunto é estrangeiros, hã? — disse com uma cadência rítmica na voz passando os olhos em mim de cima abaixo a começar pelos cabelos. — Jados e eu passaremos o dia inteiro fora amanhã e chegaremos apenas à noitinha. Fique a vontade caso queira caminhar... — Sua fisionomia crispou-se um pouco. — Só evite o contato com outras pessoas. Não vá para longe! — O tom de voz soou quase que como uma ordem.

O Descendente de Anur - Usuário do FogoOnde histórias criam vida. Descubra agora