Acordei assustado e com o coração apertado depois de um pesadelo. Nele, meu pai, minha mãe e o Leo estendiam suas mãos em minha direção pedindo ajuda com ar de aflição. Eu tentava alcançá-los, mas não podia me mover, mesmo usando toda a força que dispunha. Quando em fim eu conseguia seguir adiante, seus corpos se dissipavam como cortina de fumaça e eu ouvia o emaranhado de vozes que dizia em uníssono: "Você falhou em nos proteger".Tudo parecia muito real. Só percebi ser um sonho ao abrir os olhos e deparar-me com o quarto vazio. A Sra. Jared também não estava em sua cadeira. O aposento estava escuro, sem nenhuma iluminação. Ainda assim algumas réstias de luz penetravam pela treliça da janela formando pequenos pontinhos luminosos na cortina que a cerrava.
Os sentimentos não estavam mais tão confusos e a mente estava serena. O corpo ainda doía como se tivesse caído de uma ribanceira, mas já estava melhor do que antes. Levantei-me apoiando com as mãos e sentei encostando na parede de madeira. Coloquei o travesseiro para suavizar o encosto duro.
Arvoredo Torenkai. Deixei escapar um riso abafado, mais um grunhido, ao imaginar como havia sido carregado até exatamente onde deveria estar. Parecia até brincadeira... Pelo menos uma notícia boa, agradeci.
O mal humor reinando sobre o temperamento. Sem dúvida alguma resultado da ressaca do keer.
Ouvi passos vindo do outro cômodo. A madeira rangendo ao receber o peso do compasso sobre ela.
— Ah, então você acordou? — disse Jared assim que cruzou pela porta. Permaneci em silêncio. — Está muito escuro aqui, hã? — Ela se dirigiu até a parede oposta à cabeceira da cama e com as duas mãos afastou as cortinas. Depois, destravou o trinco da janela e a abriu empurrando-a.
Um clarão forte invadiu todo o quarto fazendo com que eu cobrisse os olhos com a mão devido a sensibilidade. Pouco a pouco as vistas foram se adaptando até que pudesse enxergar com clareza todo o ambiente de madeira rústica.
Continuei sem dizer uma só palavra, num silêncio estoico.
— E como você está, se sente melhor? — Ela se aproximou da cama e sentou-se na cadeira ao lado.
Fiz que sim com a cabeça, ainda cismado. Era difícil receber o bem sem desconfiança quando todos os outros só queriam o meu mal.
Jared estendeu a mão em minha direção. Recebi o gesto com estranheza. Sua mão engelhada repousou sobre minha fronte enquanto ela enrugava o sobrolho.
— Muito bom. Parece que a febre já o deixou. — Ela recostou-se novamente sobre a cadeira analisando-me com olhar clínico. — Menino... você é duro na queda, hã? — disse espremendo os lábios e acenando com a cabeça. — Já vi muita gente deixar a casca por bem menos...
Eu levei a mão até as faixas que envolvia meus ferimentos e depois olhei para ela sem conseguir abrir mão de uma expressão suspicaz.
— Obrigado — agradeci meio de canto de boca.
Ela rechaçou com a mão num gesto espalhafatoso.
— Depois você me conta o que aconteceu, hã? — falou e arqueou as sobrancelhas volumosas. — Teve sorte em estar vivo. — Jared jogou a cabeça levemente de lado fitando-me com seus expressivos olhos castanhos.
Dito isto, ela se levantou e caminhou em direção a uma cômoda de frente para a cama. De costas para mim, pareceu abrir uma gaveta. Virou-se segurando um pote de vidro com uma tampa bege e um líquido escuro dentro. Veio em minha direção e pegou uma colher em cima da superfície lisa de um criado mudo ao lado. Jared meteu a colher dentro do recipiente até enchê-la e depois estendeu-a para mim.
— Vamos, abra a boca!
— Mas... o que é isso? — perguntei, finalmente, receoso com a má aparência da substância gelatinosa.
— Ah, isso? — disse e apontou o beiço para a colher. — Xarope de Pau d'Arco com babosa e canela. Vai ajudar na cicatrização e evitar infecções.
Mas que tipo de xarope é esse?, questionei-me estranhando a exótica mistura. Minha mãe era versada em ervas medicinais, já havia experimentado os mais variados compostos naturais, porém, aquela exótica mistura era novidade para mim.
Abri a boca com muito custo e engoli de uma só vez o conteúdo fazendo de tudo para não encostá-lo na língua, mas joga-lo direto na garganta a fim de evitar sentir o gosto.
Assim que engoli lutei com a ânsia de devolver tudo que insistia em voltar. Com a mão na boca senti os olhos marejarem devido ao enjoo.
— Muito bem! — elogiou. — Você deve estar com fome, hã? — perguntou e levantou-se antes que houvesse resposta. Retornou poucos minutos depois com uma bandeja. Uma cumbuca com mingau de aveia esfumaçava de tão quente. Uma caneca com água fresca acompanhava. A barriga roncou imediatamente. — Coma tudo. Precisa se alimentar se quiser se recuperar rápido. Bem, vou deixar você em paz. Depois volto para recolher isso. Depois de comer descanse. Seu corpo ainda está muito debilitado. — A mulher fitou-me com olhar inquisitivo enfatizando sua recomendação e em seguida se retirou.
Comi toda a refeição enquanto refletia sobre tudo o que havia acontecido e tentando me organizar sobre o que deveria fazer. Se você estivesse comigo seria tudo mais fácil. Uma pontada aguda na altura do peito arrancou-me um suspiro ao imaginar como poderia seguir adiante sem o Leo. Eu não sabia entrar e nem sair dos lugares. Jamais estive sozinho por um único segundo em toda a minha vida. Não conhecia aquelas pessoas e nem o lugar onde estava. Senti o rosto aquecendo-se e as lágrimas brotando, mas resisti ao choro piscando forte.
Vamos, Ravel, pense no que você tem que fazer!
"Vão até o Arvoredo Torenkai. Lá vocês deverão procurar pelo grande Urso Pardo. Ele saberá o que fazer..."
As palavras do velho mestre emergiram como um norte em minha mente. Preciso encontrar o tal de Urso Pardo.
Coloquei a bandeja de lado e com grande dificuldade firmei-me sobre os pés. Com passos moderados caminhei até a janela. Apoiei-me aliviado sobre o peitoril e contemplei boquiaberto a visão do lado de fora.
Estávamos a dezenas de metros acima do nível da terra. Centenas de pessoas transitando de um lado a outro, todos com o mesmo aspecto: enormes, peludos e roliços. Uma amálgama de ruas e pontes de madeira interligando-se com centenas de casas compunham o cenário deslumbrante. Bem acima o céu esverdeado projetava sua sombra imponente sobre tudo a baixo. O canto alto dos pássaros, o voo livre dos tucanos, o guinchar dos macacos, o exército marrom de caules gigantes sustentando tudo orgulhosamente evidenciavam o cenário opulento. Tudo isso conduziu-me a uma conclusão:
— O Arvoredo Torenkai é a A Cidade das Árvores — falei baixinho perplexo com a imagem capturada pelos olhos.
A grande Cidade das Árvores é a principal de ArToren. É o reino das árvores. Já havia ouvido falar inúmeras vezes desta cidade. Uma sensação quente inundou-me o coração e uma fagulha de esperança despertou-se em meu interior.
— Tio Tautos — falei entre sussurros sentindo as lágrimas vindo novamente. Ele mora na Cidade das Árvores. Certamente ele deve conhecer o Grande Urso Pardo. Um ânimo incomum brotou junto com a possibilidade de encontrar alguém próximo, tão próximo que eu poderia até sentir um gostinho familiar. Com ele... eu não estarei mais sozinho!
Desejei caminhar até a porta e partir ansiosamente em busca do homenzarrão de aspecto hirsuto, mas as pernas fraquejaram devido ao esforço realizado. De repente a luz sumiu dos meus olhos e eu apaguei novamente.
Continua...
_______________________________________________________________________
Alguém aí com saudades do Grandalhão Atrapalhado? 😍
Será que o Tautos finalmente vai reaparecer? Isso seria muito bom para o Ravel, principalmente agora que ele está sozinho... 😢
VOCÊ ESTÁ LENDO
O Descendente de Anur - Usuário do Fogo
Fantasía#1 Lugar em Fantasia em Os Tops do Ano 2017 Balrók, o Caçador, montado em seu leão de fogo juntamente com mais sete cavaleiros negros invadem o pequeno vilarejo de Nanduque em busca de um grupo de rebeldes fugitivos. Um comerciante local, o tapeceir...