Interlúdio: O Outro Lado da Moeda

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Moscou, algumas semanas antes.

Chegavam na rua de seu prédio as duas moças, com seus cadernos e livros presos no braço, depois do dia de estudos. Uma delas, a mais alta, de cabelos castanhos cortados à altura dos ombros, carregava no rosto uma expressão de curiosidade, provinda do assunto iniciado por sua amiga, Olga Vladmirovna, esta que era um ano mais velha e que trazia uma interessante reflexão sobre o poder dos meios de transporte.

Haviam acabado de descer do bonde. O percurso de volta para casa não era dos mais cansativos e, apesar do recente plano de modernização da cidade, que tornava praticamente todos os lugares um grande campo de obras, as moças aproveitavam da vista de Moscou e passavam os minutos na condução a pensar sobre quaisquer assuntos... e ali estava o ponto que Olga defendia... a forma como se tende a pensar sobre os detalhes mais banais do dia a dia quando se tem a cabeça escorada na janela de um meio de transporte.

A segunda moça chamava-se Katherina Gregorievna, tinha ela dezesseis anos recém feitos e mudou-se de Leningrado para Moscou há dois invernos, quando deixou a mãe o padrasto e o meio-irmão para viver com o pai; um homem de bom prestígio dentro do partido, cheio dos mais diversos laços políticos, no entanto muito isolado no que consernia a vida pessoal.

— Como eu ia dizendo, meus devaneios nos transportes públicos não são banais... — continuou a filha de Nasekomoyev, demonstrando em semblante um tom de indignação — penso em começar a escrever um livro e uso o caminho para criar o enredo... Pretendo fazer algo dentro deste tal "realismo socialista"... Tenho a ideia já... não conto, pois quero que você seja a primeira a ler e não teria graça alguma se já soubesse da história inteira.

— Mas que mal há em me dar uma prévia? Ao menos me diga sobre o que se trata... não posso ler sem saber o sujeito... — argumentou Olga Vladmirovna, esquecendo-se de sua teoria filosófica, para abordar, então, o assunto proposto pela amiga.

— Pois eu gosto de ler desta forma, descobrir aos poucos do que se trata a história, ir desvendando os personagens. Tem de concordar comigo que algumas sinopses são assassinas de enredos... contam até as reviravoltas da trama... é por isso que não gosto das aulas de leitura... os mestres tem essa mania de apresentar demais a trama, para fazer com que nos interessemos pelo livro... em mim isso tem o efeito contrário.

Pararam as duas na porta do prédio: uma edificação relativamente nova, onde viviam alguns oficiais do exército vermelho e suas famílias... na teoria, Nasekomoyev, devido ao seu posto no governo, teria direito a uma residência de padrão mais elevado, no entanto, gostava da localização daquela habitação, bem como tanto ele como a filha não podiam reclamar do apartamento.

— De qualquer forma, seria interessante se me desse os capítulos conforme os terminasse, como eram os folhetins franceses... — começou Olga, mas se ateve ao transpassar a porta e chegar ao hall de entrada para então notar aquela figura alta de ombros largos escorada no corrimão da escada — Katherina, veja, não é aquele amigo de seu pai?

Gregorievna limpava a neve rala que, durante o percurso, caiu sobre os ombros de seu casaco, quando, ao ouvir a interrogação, ergueu os olhos para verificar a informação dada por sua amiga.

— Mas o que faz ele aqui a essas horas? É cedo demais para o meu pai. — disse Katherina, um pouco mais baixo, para não ser ouvida pelo visitante, encolhido em um casaco escuro, enquanto, no rosto pálido, as bochechas destacavam-se devida cor adquirida graças ao frio.

Um tanto constrangido, o jovem senhor junto às escadas ergueu discretamente a mão em um cumprimento a filha do amigo, mas não se aproximou para cumprimentá-la e parecia disposto a aguardar por Gregor Dmitrievitch ali, na entrada, sem o aquecimento suficiente... Katherina, reconhecendo o tom estranho do momento, tomou Olga pelo braço e junto a ela, aproximou-se do homem para lhe dar os devidos cumprimentos.

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