Quando Pasha entrou no apartamento familiar, portando no bolso a carta que o arrancaria dali pelas raízes, observou todos os componentes do cenário cobertos pela poeira do medo (aquela mesma poeira que encobria Moscou naqueles tempos bélicos, porém, agora, tudo parecia coberto, como um deserto de figuras de areia que poderiam se desfazer em um simples toque).
Primeiro Anya Belbogovna, sentada em uma cadeira de madeira, desfazendo as tranças de Tatyana Mikhailovna que, volte meia, reclamava das puxadas involuntárias que a mãe exercia nas mechas escuras. Piotr, perto da janela fechada, concentrava-se em seus deveres de casa, que fazia sem muita atenção, apenas para concluir as tarefas e se dedicar logo a outra coisa mais interessante. Por último Mikhail, que sem tempo para fazê-lo durante a manhã, dedicava-se a terminar a leitura do Pravda, por vezes enrugando a testa em reação às notas e manchetes do jornal moscovita.
O recém chegado não teve coragem necessária de quebrar a cena familiar e cotidiana com más notícias. Graças à carta de convocação que carregava no bolso, mesmo aquelas situações comuns, nas quais Pasha não sentia-se incluído, tornavam-se alicerces. Anunciar sua inevitável partida seria o mesmo que atear fogo em tudo e ver os pilares de sua vida normal ruírem. Por isso, alegou dor de cabeça e rumou para o quarto, onde, de roupa e tudo, enfiou-se sob os cobertores.
Tentou se organizar mentalmente: pela manhã, no dia seguinte, informaria ao seu supervisor sobre o chamado do exército, durante o dia procuraria por Klaus, para despedir-se do amigo que não via há anos, por fim, contaria à família sobre a convocação.
O choque fazia Pavel pensar daquela forma mais estruturada, como se estivesse resolvendo um problema simples, pois sua mente ainda não era capaz de processar tudo e via aquelas coisas quase como uma ficção que acabaria com o virar da noite... ao mesmo tempo, as horas eram conta gotas e seus últimos dias em Moscou transcorriam e acabariam rápido... logo conheceria o Rio Neva... logo estaria no cenário da história natalina que Mikha contava quando eram meninos.
Fechou os olhos... "quando eram meninos", não adormeceu, ainda ouvia resquícios do que acontecia na sala do apartamento, no entanto, sua mente vagava.
Pavel Iurievitch via-se em uma alameda entre-mundos, perdido em letras que amarravam as pontas de seu destino e lembrava-se, não como uma memória, mas como lapso vívido, daquela única estrada que um dia constituiu todo seu mundo. Julgou a vida mais simples naquela época, selecionando o que queria para desacreditar na dor das tristezas antigas, pois o passado, por vezes, tende a soar mais simples que o presente.
Quase podia ouvir novamente o som da maré de árvores ao vento, e se deixasse-se ir mais fundo, inclusive, ouviria o som do rio que corria após a mata fechada. Lembrou-se de um dia de folga em que se deitou na palha, perto da estrada, na saída da trilha da vila pequena. Ficou, naquela ocasião, observando Mikhail que ajudava Tânia com os artesanatos. Mikha sorria e transmitia para o mundo a pureza e aquela aura única que resplandecia distante... seus últimos dias ao lado de Mikha e Pasha sequer conseguia explicar toda a situação... não conseguiu dizer que partiria...
Ah, o mundo de antes, o campo, a voz severa e protetora de Tânia... o ar puro, nada disso existia em Moscou, grande e repleta de todas as coisas de cidade. Pasha sentiu falta de seus trajes de mujique, naquele surto nostálgico localizado na beira do abismo de uma nova mudança.
Mais uma vez o destino armava para separá-lo de Mikhail, mais uma vez um novo adeus, uma torrente de lágrimas... o mundo desabaria, tal qual desabara antes, no campo... São Petersburgo, Petrogrado, Leningrado... não importava o nome, ainda era longe de Mikhail, o rio Neva e o antigo palácio só arrancariam de Pavel toda a saudade vazia de um novo lugar, de uma nova situação. Não importaria o passado, pois ele doeria, as boas lembranças seriam arranhões... mas Pasha conhecia a sensação, ao menos sabia que poderia viver com ela e, talvez, aquele fosse um bom momento para seguir sua vida, parar de marcá-la apenas por pontos em que Mikha existia. O outro tinha uma família, o outro tinha uma vida e Pasha sentia que não possuía nada, nenhuma grande estrutura, nenhum grande feito.
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Um Conto do Leste
Narrativa StoricaRussia, 1914, a revolução bate na porta e o pânico da Primeira Guerra Mundial se espalha por toda Europa. Neste cenário nasce uma improvável amizade entre Mikhail de oito anos, filho de uma família de aristocratas, e Pavel, um camponês da mesma idad...