Capítulo XVII: Sobre Guerras e Despedidas

634 89 51
                                    

O cheiro de sangue dominava o ambiente. Aos que ali estavam, parecia não existir nada além daquele odor humano que impregnava as narinas e se unia a gemidos de dor e conversas frias como a pior noite de inverno.

Soldados feridos não paravam de chegar. Muitos já estavam mortos ao darem entrada no local ou já não havia nada que Klaus  Nikitin pudesse fazer por eles. O médico passou anos cumprindo pena nos campos de trabalho forçado da Sibéria e o tempo fez com que seus sonhos se estilhaçassem, que os ideais de liberdade se perdessem. Quando o enviaram para a guerra, como forma de pagar os anos de prisão que ainda restavam, Klaus imaginou que nenhum horror se igualaria ao Gulag de Stalin.

Estava errado...

Os nazistas conseguiram arrancar dele o pavor e o medo que julgava morto, como tudo em seu interior. O cheiro de sangue, aquele cheiro insuportável de sangue, a ameaça constante de ouvir aviões lançando suas bombas e destruindo tudo, além da agonia dos homens e mulheres que tinham a vida interrompida por um conflito sem precedentes.

Mais morto do que vivo, ainda que com o corpo inteiro, Klaus fazia o que podia junto às enfermeiras e aos outros médicos que corriam de um lado para o outro na infinidade de macas e desespero.

O que o doutor não esperava, era encontrar naquele hospital de campanha um pedaço de Moscou e de seus sonhos perdidos.

Aconteceu durante a madrugada fria daquele que viria a ser conhecido como o último ano da Segunda Guerra Mundial. Nikitin, junto aos colegas de trabalho, passaram as últimas horas recebendo e tratando os casos mais urgentes da leva de soldados que chegou do campo de batalha. Felizmente as coisas foram se acalmando e a parte mais fria da noite caiu sobre o ambiente, ainda que todas as lareiras do hospital improvisado em um antigo prédio do governo queimassem incessantes.

Os mesmos sons antes descritos dominaram o ambiente durante todo o tempo, até que, repentinamente, Klaus ouviu um nome, sussurrado em meio ao sono por um dos soldados feridos. A alcunha vagou pelo interior do médico que parecia ter acabado de ouvir a voz de um fantasma.

— Pasha — O clamar do ferido chamou a atenção não apenas pelo simples nome, afinal "Pavel" não era a mais incomum das nomenclaturas. No entanto, Klaus reconhecia a voz, não com clareza, mas sabia que já a ouvira antes.

O doutor pensou em seguir em frente, afinal, havia trabalho a ser feito, no entanto, ao escutar mais uma vez o chamado do paciente, decidiu olhar o rosto do ferido que pedia pelo fantasma conhecido e assim que seus olhos caíram na feição pálida e nos cabelos escuros Nikítin reconheceu o homem de quase dois metros de altura, deitado em uma maca muito pequena e com um curativo em sua barriga. Provavelmente Mikhail chegara ali há alguns dias e fora tratado, até então, por um dos outros médicos.

— Diga a Fiodor para assumir meu lugar. — Klaus ordenou à uma enfermeira próxima — Aquele desgraçado já descansou por tempo demais — O médico ofereceu um sorriso torto a moça que logo tratou de ir cumprir o pedido.

Klaus, em seguida, aproximou-se do ferido e lhe tocou o ombro. Mikail, então, acordou do sono tumultuado de pesadelos bélicos. Os olhos azuis se arregalaram em surpresa, primeiramente, graças ao despertar repentino, mas logo, a estupefação se deu ao reconhecer o rosto que pairava sobre si. Ele tentou se levantar, mas foi impedido por Nikitin e por um forte fisgado de dor vindo do ferimento

— Se acalme, Mikhail Iurievitch. Vou trocar seu curativo e ver como está a situação do ferimento. Procure se manter parado, tudo bem?

Sem muita reação e ainda duvidando da própria sanidade, Mikha manteve-se calado, observando os cabelos loiros de Klaus, agora, quebradiços e apagados, quase irreconhecíveis. Por um momento considerou a possibilidade de ter morrido e amaldiçoou o responsável pelo além-túmulo que colocou seu antigo rival para recebê-lo, como se não houvesse espírito mais adequados para a função. Aos poucos, porém, foi aceitando a realidade... ainda se encontrava em um hospital, ainda sentia a maldita dor causada por uma bala nazista.

Um Conto do LesteOnde histórias criam vida. Descubra agora