— Acho que a Camarada Borkowskaya não se incomodará se eu for pedir as chaves do que será seu apartamento para lhe mostrar o cômodo. Já devo advertir que é minúsculo, realmente minúsculo, ainda assim, terá mais privacidade do que tínhamos quando éramos garotos. — comentou Mikhail, enquanto ele e Pavel transpassavam as portas duplas do prédio.
Pasha tinha um sorriso em sua expressão e a todo momento olhava para o rosto do outro: sempre muito pálido em contraste aos cabelos escuros, com os traços de uma beleza bruta que permeava seu dono por inteiro. Daquele ângulo, Pavel não podia encarar os olhos de nuvem, mas já sabia, devido às observações anteriores, que eles ainda se opunham ao jeito robusto de Mikha, com a mesma doçura rara e irresistível do passado.
Mikhail tinha mudado um pouco, via-se o amadurecimento bem desenhado nele... aquilo parecia atrair ainda mais a atenção de Pavel que, se pudesse passaria horas tentando descobrir o que exatamente diferia dos outros tempos. Encontrava-se, Pasha, na ânsia de observar Mikha de perto, tão perto que poderia sentir a respiração alheia contra sua pele.
A saudade, presente em seu peito até poucos momentos antes, parecia lutar para se manter, mesmo com a proximidade, deixando para trás uma sensação dolorida em Iurievitch, um sentimento melancólico. Seu corpo, por outro lado, reagiu pedindo mais um abraço, mais contato físico, qualquer coisa que o fizesse sentir-se rodeado pelo outro, qualquer coisa que os deixasse ligados.
— Não é muito tarde? — Pasha perguntou, ainda fitando o rosto de Mikhail.
— Não, não... recem as pessoas estão chegando. — respondeu, ao passo que os dois se aproximavam da escada — cuidado... esses degraus não são confiáveis.
Começaram subida em direção ao andar superior.
Não precisaram atingir o segundo piso para que Mikha sentisse um arrepio estranho lhe percorrer a espinha... quantas vezes antes fez aquele mesmo percurso? Subiu os degraus incertos para encontrar a mesma porta que agora aparecia diante de seus olhos. Quantas vezes sentiu o peso da rotina sobre seus ombros? O cansaço do trabalho, a dor de cabeça que viria em seguida.
Quantas vezes pensou em Pasha enquanto voltava para casa? Não foram muitas, não nos últimos anos, quando as coisas do dia a dia e as preocupações familiares tomaram conta de seu tempo.
Geralmente, quando subia a escada, Mikha via seus dilemas do presente: como arrumaria alguma forma de distrair as crianças e aproveitar o tempo com elas? Como deveria proceder para agradar Anya e tornar o dia dela um pouco melhor? Quando deveria ir até o posto de racionamento para buscar os suprimentos? Teriam farinha naquele mês?
Pavel aparecia mais em sua mente na hora em que Mikhail deitava a cabeça no travesseiro... antes de dormir. Aquele sussurro da alma o avisando que todos os sentimentos por Pasha ainda estavam ali, ocupando o mesmo espaço de antes, ainda que sufocados pelo cotidiano.
Às vezes tal lembrança era nostálgica e doce, capaz de colocá-lo no sono com tranquilidade, outras vezes, a saudade era tudo o que existia e Mikha escondia o rosto contra os travesseiros, para chorar um choro silencioso que também o levava ao inconsciente, mas de maneira mais cansada. "Por que você não responde as minhas cartas?" ele pensava, às vezes "Está tão magoado com que eu escrevi da última vez? Eu só disse a verdade! Só contei aquilo que nós dois sabíamos e nunca tivemos coragem de dizer."
Agora aquela carta estava muito bem escondida, dentro do caderno que outrora pertenceu a Petyr, guardado sob um pedaço de madeira solto no chão do apartamento. Ninguém nunca encontraria, Pavel nunca leria o teor quase obsceno daquelas palavras embriagadas...
Logo passaram os dois pela porta da casa de Mikhail, e o senhor pensou em avisar Anya e as crianças sobre a chegada de Pasha, seria o correto a fazer, o mais óbvio, mas por medo, ele reconsiderou.
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Um Conto do Leste
Historical FictionRussia, 1914, a revolução bate na porta e o pânico da Primeira Guerra Mundial se espalha por toda Europa. Neste cenário nasce uma improvável amizade entre Mikhail de oito anos, filho de uma família de aristocratas, e Pavel, um camponês da mesma idad...