Capítulo X: O Oasis Escarlate

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No verão de 1922, a guerra civil russa dava seus últimos suspiros. O poder do exército vermelho se estabelecia e a Rússia, finalmente, parecia tomar um rumo no meio de todo o caos e disputas que se seguiram à revolução.

Mas a guerra deixou um rastro de fome: a escassez, já comum na vida de todos moradores da vila, agravou-se em 1921, com uma grave seca que atingiu os campos somada ao confisco dos alimentos ordenado pelo governo.

Não havia mais nada a se fazer, além de esperar a morte e ela sempre chega.

Primeiro, o ceifeiro levou as gêmeas de Vozroditsky e o jovem casal se encerrou na própria casa por semanas. Uma tragédia da cor dos rostos pálidos de crianças subnutridas, a mercê da própria sorte e amigas da desgraça que tomava os campos.

O senhor e a senhora, ainda usufruindo dos anos de fertilidade, bem poderiam ter outros filhos, no entanto, as novas proles nunca substituiriam a figura das duas garotinhas, que com sua pouca idade, buscavam a liberdade explorando os capins altos e o mundo pálido que deixaram muito rápido.

Não se estranhava a tristeza atônica dos pais: olhos baixos, lágrimas despudoradas na frente de qualquer vizinho, desaparecimentos dilacerantes e o peso do luto que agravou-se com os boatos maldosos das pessoas:

Não enterraram os corpos, ao menos não houve uma cerimônia, o que fez crescer as histórias exageradas de que pai e mãe devoraram as próprias filhas.

Se havia alguma verdade ou não nas fofocas espalhadas pela vila, nunca será possível dizer, já que semanas depois, Dasha encontrou o senhor e a senhora pendurados pelo pescoço em uma árvore do bosque.

A fome e os horrores daqueles anos colocavam em xeque a moral da fábula de La Fontaine, narrada a Pasha por Mikhail no inverno anterior.

"Melhor sofrer que morrer"¹, dizia o último verso. Nem sempre é assim.

A trágica anedota de Vozroditsky de singular nada tinha. Tais fatos macabros, dignos dos contos mais perversos, vagavam pela região como uma praga de gafanhotos. Modificava-se muito os detalhes, conforme os contos eram narrados, no entanto, sempre havia um tom terrível e um desfecho doloroso velando as novidades.

Pavel Iurievich, anos mais tarde, escreveu anonimamente algumas páginas sobre aqueles dias. Dentre os parágrafos assustadores e as ponderações de cunho sociológico há um tópico dedicado a sua própria vivência: o que viu quando era um menino de dezesseis anos. O panfleto, publicado e lido por poucos estudantes universitários, foi uma das poucas coisas que saiu das gavetas de um Pasha crescido e os relatos lhe renderam fama dentre seus detestados academicistas.

Eis o que aqui se faz relevante citar:

"Durante meses vivemos em estado de subsistência. Meu irmão e eu líamos os meados de Anna Karenina, quando no início da primavera de 22, acabou-se a comida que tínhamos estocada. Contávamos com a ajuda de uma vizinha e sua filha, arrancávamos o que podíamos da natureza e ainda assim, chegamos passar três dias inteiros sem comer um único grão."

"Ainda lembro deste meu irmão - o estereótipo russo de homem alto e robusto - perdendo sua musculatura aos poucos e tornando-se tão magro como eu naturalmente era. Minha mãe, por sua vez, desaparecia em suas roupas, pois teimava em se alimentar muito pouco, para que sobrasse mais para 'as crianças'"

"O som dos estômagos roncando tornou-se nítido aos ouvidos e ninguém se envergonhava do ruído (...), pois todos sofríamos do mesmo mal: faríamos qualquer coisa por um único pedaço velho de pão."

"Dávamos graças quando um pássaro deixava seus ovos nos ninhos das árvores. Comíamos qualquer coisa possível de ser ingerida que não causasse estragos na alma ou no corpo. Esperamos que o fim do verão chegasse, para que pudéssemos colher o pouco que nossa horta renderia, após os saques e a falta de sementes."

Um Conto do LesteOnde histórias criam vida. Descubra agora