Capítulo II: O Hospede (Parte 2)

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Todos os dias, na fábrica de munições, Mikhail lidava com a pólvora, de forma que o cheiro da substância impregnou-se em suas roupas da mesma maneira que o odor do tabaco se infiltra no corpo do fumante.

Centenas de cartuchos passavam diariamente diante aos seus olhos, nas esteiras industriais do ambiente mal-iluminado. Vez ou outra, ao observar as balas metálicas, Mikhail pegava-se vagando pelas lembranças das caçadas feitas ao lado do irmão, na tentativa de descobrir se em alguma ocasião durante sua vida havia disparado uma arma de fogo com suas próprias mãos.

De qualquer forma, gostava de pensar na ironia: participar da fabricação de munições e ter atrelado a ele o cheiro de pólvora em comparação a ideia de que provavelmente nunca tenha atirado verdadeiramente, embora soubesse muito bem como manusear uma arma, devido às explicações detalhadas que Petyr proferia em relação a montagem, ao carregamento e até a limpeza das espingardas.

Mas esta não era a única reflexão que o emprego costumava causar em Andreyevitch. Anteriormente, por diversas vezes, o rapaz pegou-se considerando o destino dos produtos que passavam por suas mãos, principalmente nos primeiros tempos em Moscou, antes de compreender detalhadamente como funciona os procedimentos da vida real, mais especificamente, da vida real de alguém responsável por uma família.

Mikhail precisou de anos vivendo em uma rotina cinza até seu nariz se acostumar com o cheiro de pólvora e junto a isso, ele passou a abandonar os pensamentos críticos quanto ao que fazia, de forma que seu dia tornou-se ainda mais mecânico: executava ações sem pensar nelas e encobria os protestos em sua cabeça com mais trabalho.

No entanto, naquela manhã, as coisas foram diferentes desde o momento em que abriu seus olhos de algodão. As orbes, sempre pacíficas, logo voltaram-se ao relógio na parede e o jovem senhor viu-se tragado pelo sentimento nostálgico de que já havia vivido aquela mesma cena antes.

Déjà-vu: uma expressão vinda do francês, que pode ser traduzida literalmente como "Já visto". Seu significado, porém, vai além do simples conceito de fitar duas vezes a mesma coisa, pois todos os dias Mikhail acordava aproximadamente naquele mesmo horário e em diversas situações encarava o relógio para localizar-se no tempo, mas nunca antes foi atingido por tamanha nostalgia.

Ele olhou brevemente para Anya, deitada a seu lado, aproveitando de um merecido sono após sua dura rotina de trabalho. Mikha sorriu para ela com o coração apertado. A deixaria descansar e daria a si mesmo alguns momentos na solidão: algo raro para ele, sempre ocupado com algum afazer ou cercado de pessoas.

Com os dedos tortos e longos, Mikhail Andreyevitch Karev afastou as cobertas, em seguida, vestiu-se com o uniforme de trabalho e os agasalhos. Por fim, caminhou até o segundo cômodo em seu apartamento.

Não acendeu as luzes, foi direto em direção a janela e abriu as venezianas. Baixou o vidro logo em seguida, para impedir que o vento frio adentrasse a casa, por último, puxou uma cadeira e sentou-se diante à vista da cidade.

O sol fraco que aparecia atrás das edificações deixava Moscou amarelada. "Mais algumas semanas e começam as tempestades" Mikha pensou, aproveitando-se da imagem que em breve se tornaria rara com a chegada da chuva torrencial que inundaria alguns quarteirões da fluvial e gigantesca cidade.

De seu apartamento, o rapaz não podia ver São Basílio ou o Kremlin, mas reconhecia a presença imponente dos gigantes símbolos moscovitas e sorria ao imaginar a expressão de Pavel Iurievitch ao ver pela primeira vez o resplendor da capital soviética. "Ele vai franzir as sobrancelhas, como se sentisse toda emoção do mundo" Mikha disse a si mesmo, remontando na memória o rosto expressivo de Pasha, quase como um quadro: uma daquelas obras de arte que merecia o destaque em um museu de preciosidades.

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