Capítulo XVI: Decisões de Última Hora (Parte 4)

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Os olhos de Pavel Iurievitch direcionaram-se ao céu parcialmente oculto pelas copas das árvores. As folhas amareladas já se esfarelavam em seus últimos suspiros antes que a neve cobrisse o mundo em uma vastidão uniforme. Mais a cima, o chumbo das nuvens carregadas ainda era discreto, graças a falta de luminosidade  e enquanto seguia Mikhail por aquele ambiente, Pasha encolhia-se mais e mais nos agasalhos insuficientes para a temperatura de três graus negativos que fazia no início da manhã.

— Virá uma tempestade, é provável que a neve caia ainda hoje. — Pavel comentou ao apurar um pouco o ritmo da caminhada, para não acabar perdendo a imagem de Mikha entre a penumbra.

No interior do bosque, as folhas quebravam-se, cobertas pela geada e o mundo amortecido destilava uma neblina que pairava há metros dos ramos entorpecidos da natureza de silhuetas incertas.

— Onde vamos? — perguntou Pasha impaciente, antes de enfiar as mãos frias dentro do bolso do casaco — Aqui não está bom? Já podemos conversar?

Mikhail, diante a insistência, concordou com a cabeça e parou de andar. Colocou o lampião sobre o chão e escorou-se em uma árvore desfolhada, donde, por entre os galhos limpos, podia-se ver a claridade cinza da aurora que se aproximava.

Os lábios do antigo aristocrata ganharam um tom mais avermelhado ao passo que sua pele tornou-se mais alva como reação a temperatura. Seus cílios longos ainda guardavam os olhos cuja cor parecia adaptar-se ao mundo azulado que os cercava, embora a frieza natural permanecesse distante das orbes, inundadas pela emoção e por um medo acuado que refletia-se em Pavel e tomava no último a forma de receio.

— Anya quer partir para Moscou — Mikha disse, voltando a atenção para o rapaz que postava-se diante dele.

— Pois isso eu já sabia, ela deixou bem claro ontem a noite — Pavel deu de ombros.

— Ela insiste... me chamou de egoísta por recusar, argumentou que não penso na... — Mikha limpou a garganta, um tanto desconcertado — na criança.

Pasha acenou com a cabeça em afirmação perdida, com a serventia apenas de confirmar que compreendia as palavras ditas pelo outro, embora sucumbisse a incapacidade magoada de se pronunciar quanto ao assunto.

Seus pensamentos vagaram por tantos lugares durante as horas precedentes que, mais de uma vez, o filho de Tânia viu-os chegar à constatações e soluções distintas para o que lhe caía sobre a cabeça de uma hora para outra... 

Cada um dos caminhos que Pavel podia trilhar, cada possibilidade nova, aberta pela permissão de viagem, além, é claro, da dicotomia que envolvia o mundo inexplorado versus o lar da infância.

A cidade e seus muros destruídos... tão distinta nas palavras dos livros... quase mitológica ao rapaz nascido e trancafiado no mundo curto e conhecido.

— Um Karev não vive em Moscou desde a "Campagne de Russie" — Mikhail riu nervoso. Não havia certeza naquela informação. Muito provável que existisse algum ramo de sua família perdido pela nova capital, mas lhe soou poética a constatação, da mesma maneira que as maldições e profecias soam como belos versos carregados de mistérios.

— Desde que? — Pasha estreitou as sobrancelhas.

— A campanha da Russia... sabe, quando evacuaram Moscou, na invasão de Napoleão... é a história da minha família... como viemos parar aqui — Mikhail mantinha-se inquieto em busca de calor no ar gélido das temperaturas anunciadoras do inverno que em breve chegaria.

— Essa você nunca me contou — um tom de saudosismo invadia a voz de Pavel Iurievitch e logo sua mente tomou-se completamente de memórias infantis compartilhadas junto ao fogo, nas noites em que os dois rapazes dedicavam-se a tecer os nós fortes do vínculo que os unia.

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