Capítulo XIV: As Portas Para o Futuro (Parte 3)

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O som distante das cordas de uma balalaica tocava nas lembranças de Pavel Iurievitch, como um eco de um passado infantil, ocorrido antes mesmo da chegada de Mikha em sua vida.

Foi em uma celebração pascal, talvez... ele não conseguia recordar com precisão. No entanto, o som da música ainda era claro em sua cabeça, junto ao coro de vozes regido pelas pessoas que sentavam-se em círculo, ao redor do músico já sem rosto.

A melodia, carregada de uma dramaticidade exagerada, fazia as cordas do instrumento chorarem a dor de um Cossaco¹ que viu a mulher amada deixar os campos do sul para casar-se com um conde de Petrogrado.

"Diga a condessa Kozlowskaia que rumo aos bosques para não sair de lá" — dizia um dos versos.

Sem dúvida alguma a cantiga popular, ouvida anos atrás, foi um elemento decisivo no momento em que Pavel escolheu o rumo que deveria tomar naquela tarde.

As mãos do rapaz tremiam e seu peito ardia em uma já conhecida agonia, presente em seus dias mais sombrios.

Ele conseguia atenuar aquelas coisas com os livros, com a ideia de perder-se em um universo de parágrafos, mas as leituras não eram capazes de afastar completamente seus fantasmas, de forma que, vez ou outra, o cinza dos pensamentos mais sufocantes aparecia, bem como os involuntários instintos nervosos, que não acalmavam-se com facilidade.

Naquele ponto, após finalmente conseguir processar os eventos mais recentes, a mente de Pavel já emaranhava-se na consciência venenosa, que com sua voz interna repetia várias vezes, como um refrão "não sou um bom filho, um bom amigo ou um bom homem".

Lhe parecia óbvia tal constatação. A única amizade que conhecia abalava-se com tempestades fortes e caóticas. Em relação a Tânia, Pavel criticava a falta de sinceridade: a pintura de um filho comum, que ocultava sua natureza supostamente defeituosa. Por último, sem vislumbre algum do mundo fora de suas barreiras, Pasha acreditava que todos, no fundo, possuíam um bom motivo para se distanciar dele.

Atos cobravam um preço a ser pago com a sensação do abandono gradual.

Agora, Mikhail Andreyevitch, Ana Belbogovna, Natasha Kuznetsova e Tatyana Kresnikovna, aos olhos de Pasha, formavam um núcleo próprio, uma sociedade de pessoas "normais" que entendiam-se bem entre si, enquanto ele, era apenas um estrangeiro no país dos dilemas simples, da vida cotidiana, das dores efêmeras e das alegrias banais.

Anya e Mikha mantinham-se na esfera de seus próprios problemas, tão distantes de um Pasha incapaz de compreender que as pessoas e suas complexidades se ramificam para além do que olhos externos podem captar.

Ainda assim, não se deve interpretar como egoísmo os declives de uma mente abalada e de uma consciência juvenil. Se Pavel não percebia os sentimentos alheios como deveria, era porque não tinha acesso a nada além de interpretações, insuficientes, diante ao pouco que lhe era demonstrado.

A mesma fórmula cabia aos demais, que notavam a distância nos ares de Pasha, mas nunca conseguiriam de forma plena, entender seus temores e seu caos, ainda mais em um mundo congelado, onde as enfermidades sem fraturas expostas eram desconsideradas e desconhecidas.

Pavel Iurievitch seguiu pelos bosques amarelados, onde as árvores preparavam-se para um outono próximo. O vento do sul balançava os galhos com uma força inconstante e o sol moribundo cegava os olhos com a luz que passava por entre os troncos firmes.

A melodia do som das botas quebrando vegetação morta ao chão seguia um compasso lento, guiado pela dificuldade do terreno e pela confabulação dispersa. 

Certamente, tratava-se de um caminho mais dificultoso do que a estrada, no entanto, como o Cossaco da música, Pavel era guiado de volta ao mundo natural das florestas, mundo este, deixado pelo homem, que abrigou-se em suas convenções e na sociedade... talvez, ele pensou, a solidão silenciosa dos bosques tenha curado as dores amorosas do protagonista da canção... e quem sabe, ali, encontraria para si um espaço, uma forma de atenuar o caos e a bagunça de sua alma.

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