Capítulo XII: Uma Utopia (Parte 1)

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O sol de verão passava pelas janelas do bonde, tocava os rostos e, por vezes, cegava os olhos com um brilho pálido (reflexo de algum metal, ou da água de alguma poça... detalhes moscovitas que sumiam muito rápido do alcance das vistas). Tal coloração dourada do mundo lembrava Pavel dos cabelos de Klaus Konstantinovitch, da aura solar que cercava o doutor.

Já faziam três meses que Pasha não recebia nenhuma notícia do amigo.

A inquietação vagava por seu ser, toda vez que vislumbrava logicamente os caminhos que o mundo tomava. Bem verdade que não podia prever a fuligem dos anos que se seguiriam, mas aos poucos, os corredores tornavam-se mais estreitos, demonstrando que, em algum momento, as paredes da realidade acabariam por sufocar quem quer que fosse "indesejável".

Os olhos de Pavel rumaram em direção a Mikhail, sentado, com o semblante cheio da exaustão do dia de trabalho. Com ele,, as conversas também se tornavam raras e quando aconteciam, seguiam o tom rotineiro.

A possibilidade de sucumbir ao que foram nos anos de juventude se fazia nula no cenário pálido daqueles dias de metal. Viver sob as conhecidas máscaras era o que restava. A normalidade servia como cortina, só precisavam ser o que se esperava de um perfeito soviético, embora, a cada dia que passasse, os requisitos para tal função tornavam-se mais severos.

A vida, portanto, resumia-se ao trabalho... ao trabalho e às poucas horas de descanso, geralmente, destinadas a refeição e ao sono. Mesmo as folgas, agora, eram veladas por um silêncio incômodo e até as aulas de francês cessaram. Nem professora e nem aluno sentiam-se confortáveis em dar procedência aos estudos.

"Já consigo ler os livros e me comunicar. É isso o que eu queria, afinal", Pavel justificava a si mesmo, para não admitir que sucumbia ao medo de acabar preso, ou pior...

Os olhos de nuvem tornaram Pasha seu alvo. Mikha reconhecia no outro aquela melancolia que beirava o desespero do marasmo, a mesma melancolia que se fazia presente na maioria das pessoas que dividiam o transporte público. Moscou, ao redor, parecia coberta de poeira.

O barulho dos trilhos impregnava os ouvidos, junto ao som do sino do bonde. Pessoas subiam, pessoas desciam, todos indo para suas casas. Pavel notou que as mangas de seu uniforme de verão começavam a ficar gastas. Por outro lado, Mikhail percebia, ao olhar pela janela, que a avenida estava mais movimentada que o comum naquela noite. Chegou a conclusão de que, provavelmente, alguma fábrica próxima atrasou a produção e os operários tiveram de cumprir mais tempo que o habitual.

Ainda faltava algum tempo para deixarem a condução, mas não ocupavam a viagem com nenhum assunto. A seriedade alastrava-se por tudo, talvez, os dois jovens de outros tempos jamais pudessem se imaginar ali, onde estavam: quietos e tocados pela luz poeirenta do sol moscovita.

A cidade, tão grande, limitava. Parecia aos dois, de certa forma, que o lar da infância, o mundo de uma única estrada, era muito mais extenso que a metrópole soviética. Poderiam, até, como queria o governo, tornar aquela a maior cidade do mundo, no entanto, ainda seria pequena e restrita, nas grades de um comum organizado na rotina.

A empolgação extinguia-se nas mesmas coisas de sempre, a empolgação tornava-se medo. Pavel, mais uma vez, olhou para Mikhail de relance. Talvez, uma hora ou outra, as noites com ele também viessem a se tornar poeirentas como todo o resto. Já não ficavam juntos há algum tempo, mas o medo, intruso, não os colocava ansiosos para um novo encontro... poderia dar algo errado, além disso, Anya vinha desconfiando.

Mikhail notava os olhares da esposa, as observações. Ela suspeitava de um possível envolvimento de Pasha e Mikha em alguma dessas tentativas de oposição ao governo fadadas ao fracasso. Por vezes, antes de dormir, a senhora fazia, ao marido, perguntas sobre o assunto.

Em noites assim era difícil dormir. Mikhail acabava criando cenários onde Anya viria a descobrir tudo. Imaginava, no rosto dela, o semblante horrorizado. Podia prever a raiva da esposa com perfeição e o pior era que jamais poderia, mesmo nos pensamentos mais otimistas, vê-la compreender sua perspectiva da situação.

A culpa aparecia com mais frequência, uma vez que Anya se via intrigada. A trama de todas as mentiras, todas aquelas coisas que ela desconhecia... a bola de neve de enredos só tomava maiores proporções e sufocava tanto o mentiroso que, por vezes, surgia-lhe o impulso de chegar em casa e revelar tudo, apenas para ver-se livre do peso sobre seus ombros.

Mikha bateu os dedos na janelas, com certa impaciência. Estava sentado, Pavel encontrava-se em pé. Sentia a presença alheia, embora fingisse não dar atenção, ou tratá-la como um detalhe comum do ambiente. Não fazia por mal, mas por sufocamento, pela incapacidade de ver uma saída honesta ou justa para tudo aquilo.

______________

Andavam lado a lado na rua. Tinham acabado de saltar do bonde. Seguiam a mesma direção de todas as noites, mantendo a atenção voltada para os próximos passos a serem seguidos. O ritmo da caminhada era constante e Mikhail, como forma de distração, contava mentalmente o número de edificações da rua, na tentativa de ocupar o pensamento com uma banalidade qualquer.

— Beberemos juntos essa semana? — Perguntou Pavel, acordando Mikhail do transe.

— Não sei se é uma boa ideia. Anya...

— Eu compreendo.

Voltaram a se calar. Os olhares de Pasha rumaram para uma moça, no alto de um dos prédios de moradia. Ela fechava as janelas do que, provavelmente, era seu apartamento. Não havia nada de incomum, mas a cena serviu ao seu propósito de disfarçar a breve decepção que recaiu sobre Pavel.

Mikha conteve o suspiro pesado. Manteve-se quieto por alguns momentos, embora, ainda sentisse a necessidade de justificar-se para seu companheiro de trajeto, conversar sobre cada uma daquelas coisas engasgadas.

Não ali, obviamente, nem no apartamento do outro, uma vez que acabaria por atiçar os questionamentos de Anya.

As palavras já o sufocavam e Mikha as repetia mentalmente. Imaginava que as dizia, ali mesmo, enquanto caminhavam. Imaginava que mantinha um diálogo com seu confidente e que juntos, buscavam por uma solução viável, algo que não ferisse ninguém.

Não funcionava, ao menos não completamente, mas o fingimento o tranquilizava um pouco... o suficiente para que desse seguimento a caminhada sem cair em um pranto nervoso e engasgado.

Já aproximavam-se da casa, quando Mikhail cansou-se. Tanto de si mesmo, quanto da conversa fictícia que criava, um eco que mais parecia uma lembrança, mas que por minutos foi seu único pilar.

Olhou para Pavel, notou nele aquela desatenção estranha... um silêncio calado demais para os dois. Percorreu os arredores com as vistas e, fingindo casualidade nos gestos, proferiu:

— Lhe farei uma visita esta noite. 

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