Capítulo III: Não Há Lugar Para Culpa (Parte 4)

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Naquela noite, Anya e Mikhail colocaram os filhos na cama mais cedo para poupá-los dos problemas e tragédias da vida adulta: tudo que inevitavelmente seria suscitado pelo que Pavel Iurievitch viria a dizer sobre aqueles anos de contato interrompido entre as famílias.

As duas crianças, no entanto, demoraram mais tempo do que o esperado para pegar no sono... ambos, ainda que não soubessem ao certo do que tratariam os pais e o novo tio, reconheciam nas atitudes dos adultos aqueles traços que os levavam à conclusão de que um grande e significativo evento ocorria ali. Tatyana sequer conseguia montar direito tais coordenadas e, com seus dois anos, apenas sentia um aperto desconfortável no peito, uma angústia resultada da sensação de que alguma coisa acontecia com seu pai e sua mãe.

Piotr já, um pouco mais ciente, devido a sua idade mais adiantada que a da irmã, conseguia compreender que ia além de algo simplesmente ruim ou difícil e que tais eventos começaram mesmo antes de seu nascimento. Sabia que a situação ia além de uma simples briga conjugal, por exemplo, mas adotava a mesma agonia infantil de quando ouvia as brigas em voz baixa de Anya e Mikha.

Este era o motivo para não conseguirem e até relutarem em cair no sono, mas com o tempo, a presença das duas figuras ali, os acalmando, além do cansaço diário transformaram o fingimento da inconsciência em sono verdadeiro, de forma que nenhum dos dois percebeu o momento exato em que os pais deixaram o quarto e voltaram para a sala.

Pavel, que ficou todo o tempo sentado no divã, bebendo um pouco de vodka para manter o calor corporal, suspirou pesadamente ao ver o casal de anfitriões deixar os aposentos para se juntar a ele no ambiente.

O visitante, naquele momento, parou de examinar os objetos, como fizera durante toda sua espera, e voltou-se a Anya e Mikhail, ambos inseguros, ambos tão nervosos quanto ele.

Anya sentou-se ao seu lado, ao passo que Mikha puxou uma das cadeiras de madeira e colocou-se diante do outro, como se formassem um círculo secreto para receber aquela odisséia trágica que Pavel estava prestes a narrar.

Mikhail batia o pé contra o assoalho, um tanto impaciente, enquanto Anya apertava as mãos e torcia os dedos inquietos, ao passo que Pasha, como de costume, se encolhia mais e mais, quase sumindo sob a farda e o casaco que Mikhail esquecera na casa de Nasekomoyev.

Nenhum dos três sabia como iniciar a conversa: Pasha teria de narrar os eventos de maneira cronológica ou aguardaria as perguntas do casal, para solucioná-las uma a uma?

— Mikha, Anya... obrigado pela recepção — Pavel começou, desviando-se da ideia de ir direto ao ponto — eu lamento... — ele limpou a garganta, seu coração disparou — eu... lamento tanta coisa que nem sei...

Mikha mordeu o lábio inferior com força, pensou em proferir um pedido para que Pasha não se submetesse aquele discurso, mesmo que a alma do jovem senhor gritasse por explicações, por todas as coisas que ele não sabia como aconteceram e que apenas o amigo de infância poderia solucionar.

— Você sempre será bem-vindo em minha casa, Pasha — Mikhail disse, após alguns segundos de confabulação — da mesma forma que fui bem recebido por nossa mãe...

A menção a Tânia os deixou pesarosos. A morte da senhora ainda era uma ferida aberta, que fisgava os afetados apenas com a lembrança de que o maior porto seguro de suas vidas já não existia mais.

— Ela... estaria orgulhosa — Pasha respondeu em meio a uma risada melancólica — quando vejo as suas crianças, quase consigo imaginá-la, dando uma daquelas broncas carinhosas...

— Conte o que aconteceu... — Anya pediu mais baixo e embora o pedido viesse do conhecido instinto da senhora em ser direta, as palavras soaram, não como uma ordem, mas como uma súplica, de alguém que torturou-se por semanas com a dúvida.

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